Dentes
Meus pais nunca souberam a quem culpar pela espantosa condição do meu irmão mais velho. A mastigação lenta e asmática se ouviu estalar no nosso quarto. Mas dessa vez não era o hamster; o hamster, mesmo, não fez barulho.
Cuidado
Ao sentir a presença do menino à porta, um lúcido desvario: "Ele já foi, filho". Havia na cama uma sopa vermelha em nada absorvida pelos tecidos. Enquanto o homem se agitava nos lençóis, a mulher retinha-o com todas as forças do braço. Suplicava, engasgada em lágrimas: “descansa, Bira, descansa”.
Névoas
Peregrinou vielas sob o chuvisco da luz dos postes, lhe surgiram nas mãos corpos prontos para o usufruto, alguém com uniforme escolar fazia saudades, lábios murmuraram um segredo insuportável, a dor física lhe forçou a abrir os olhos. O carcereiro, equilibrado na escada de dobrar, trocava a lâmpada do corredor.
Ordem
Desabou num sono de muitos degraus e foi recebido nas águas quentes do esquecimento. Girinos serelepes fizeram refúgio nos furos do seu coração de calcário e o peito grave se emprenhou de vida. E então o despertar, implacável, em um instante restaurou os fios que ligam o dia de hoje a todos os outros dias.
Enredo preguiçoso
Ele estava sozinho, daí aconteceu algo que só poderia ter acontecido se ele não estivesse sozinho, supondo-se assim que havia um fantasma o acompanhando.
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SOBRE O AUTOR
Vinícius Samuel, nascido em 1991, é natural de São José dos Pinhais e vive em Curitiba, Paraná. Tem formação em Letras pela UTFPR e cursa mestrado na mesma instituição, na área de teoria literária. Trabalha como revisor de textos acadêmicos. Escreve textos literários desde muito cedo e em 2020 teve publicado em versão digital o livro de contos Cai do céu uma vértebra em brasa. Deseja da arte qualquer coisa misteriosa e aguda.
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