Por Bárbara Martins
Escrevo sobre mulheres
para descobrir os segredos
do mundo.
(Samantha Abreu)
Debaixo das unhas carregamos todo tipo de sujeira. Restos de pele quando nos arranhamos, vestígios de terra depois de fazer um buraco com as mãos. E o livro de Samantha Abreu cava com as unhas buracos, e nos deixa pistas debaixo delas sobre os mistérios de ser mulher neste mundo. Publicado em 2020, pela editora ponta-grossense Olaria Cartonera, o livro integra a Coleção 277, direcionada à publicação e divulgação dos poetas paranaenses.
Os poemas que encontrei nesse livro, possuem uma delicadeza, às vezes até brutal, quando acessam intimamente as descrições dos corpos, contornos, vísceras, carnes e sangue desse ser mítico, complexo, contraditório, possuidor de asas que “se abrem sobre os homens” e seu “esplendor cega as grandes ordens do dia” chamado mulher. Em composição formal, preciso ressaltar que a forma dos poemas reverbera aquilo que os versos têm a dizer. São poemas que não seguem métricas, rimas, nem conservadorismos formais, são versos livres, assim como as mulheres representadas.
A poética de Samantha Abreu me toca em vários aspectos. Um deles é o silêncio que perpassa os poemas. É a primeira vez que leio sobre o silêncio das mulheres de uma perspectiva diferente. Esse silêncio não diz necessariamente a respeito do silenciamento das vozes de mulheres diante de suas vontades, corpos e direitos. Diz sobre o silêncio feito ao olhar para dentro de si. Em versos, as dores das mulheres são descobertas “quando planam silenciosas para dentro de si”. E dessas dores apáticas, o corpo se faz fértil. Brotam e florescem “nas pequenas costelas flutuantes”.
Nessas mulheres, “os pelos crescem tão silenciosos” que “não sabem deles os grandes debatedores políticos, educadores de biologia” nem mesmo “os poetas inspirados pelas musas”. Então, somente as mulheres os sabem quando olham para dentro de si. Encontrei também nos poemas, as meninas. Algumas delas flertam com a liberdade de se jogar de um parapeito, mas “se recolhem silenciosas para suas modéstias”. Outras nem mesmo flertam, apenas “se recolhem”. Mas a voz do poema se joga “do parapeito das meninas, sorrindo as sobrancelhas e deformando a boca enquanto berro”.
O silêncio ainda é “a língua de anjos silenciosos”. Eles falam silêncio quando observam o maior dos mistérios: “fecundar os úteros de mulheres tristes”. A voz do poema tem o desejo de falar essa língua onde o “grito é mudo”.
E as meninas moças que na menarca escorrem sua inocência pelos ralos do banheiro também ficam em silêncio. Abafam o grito de ajuda e desejam “que fosse possível devolver ao corpo sua infância”. Seguram “com as mãos de concha entre as pernas” o “sangue”. Espalham “delicadamente” seu sangue pelo corpo e se veem no espelho como “uma mulher em carne viva”.
Mas não é só de silêncio que os poemas são feitos. Os poemas falam de amor, de gerações e gerações de mulheres cujas chamas não foram apagadas. Antes de tudo, eles são convites para “despertar as canções de antigamente”, “alimentar-se de deslumbramento quando aproximar-se de outra mulher em observação mútua”. São convites para ser espectro e ensinar as “outras a serem espectros”.
Apoio ao projeto Olaria Cartonera: https://www.catarse.me/olariacartonera
Título: Debaixo das unhas
Autora: Samantha Abreu
Editora: Olaria Cartonera
Ano de publicação: 2020
Que Coisa mais linda! Eu leio e o coração fica acelerado. Muito obrigada, Barbara!!