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Dois contos e uma crônica de Susan Blum


Lã Negra


Sacolas cheias de lã negra pendiam de suas mãos cheias de fios enrugados e dedos enosados.

Os jovens vizinhos quase não a viam sair de casa, durante a pandemia. Ela era quieta e soturna. Bom para eles que, recém-casados, viviam as tertúlias amorosas em todos os instantes possíveis.

Moradora do terceiro andar, eles nunca viam visitantes. A mocinha, já cansada das subidas ao segundo andar admirava a força de vontade da senhorinha que, agora que diminuíram os casos e mortes, com o aumento dos vacinados, volta e meia subia com sacolas de lãs. Até pensava na possibilidade de - engravidando – lhe pedir roupinhas de bebê.

A vida seguia seu labirinto de “novo normal”, com altos e baixos, obstáculos e retornos.

Pequenas brigas do jovem casal logo eram resolvidas com enlaces amorosos tal qual duas aranhas na cama. Teciam birras, para destecerem logo depois. Pequenos nós de mágoas logo eram cortados com beijinhos e presentinhos.

Um dia um cheiro ruim começou a invadir o apartamento. A jovem insistia para que ele limpasse os encanamentos, os ralos, os banheiros. Mas o cheiro persistia.

Lançavam jatos de perfume antes de sair de casa. Acendiam incensos. Mas nada resolvia. Um dia, foram atrás do cheiro e perceberam que vinha do apartamento da senhorinha. Bateram na porta, tocaram a campainha... e nada!

Depois de uma semana, resolveram chamar um chaveiro. Já que nunca a viam, pensaram que ela devia ter viajado e deixado algo estragado na casa. Iam limpar e depois avisar a senhorinha. Ao abrir a porta o viram: enrugado, enegrecido, carcomido... pendia, nu, do ventilador de teto, tal qual fruta podre.

A única vestimenta: um cachecol de lã negra no pescoço.

Ariadne havia libertado seu Minotauro interior... depois de nove meses de pandemia.


*Publicado originalmente no blog: www.novelosnadaexemplares.blogspot.com



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Presente de Grego




Eu estava para entrar no meu edifício quando a vi. Minto. Na verdade eu já a observava quando virei a esquina, pois seu corpinho encurvado, seus passos trôpegos e seu olhar assustado, já me indicavam uma boa personagem, depois de um ano e três meses de isolamento.

Quando eu estava para abrir meu portão, ela estava bem próxima e me perguntou com seus olhinhos azul mar calmo e uma voz límpida: “Eu moro aqui?”.

Aquela pergunta me perturbou profundamente. Respondi calmamente: “Não sei, mas vamos perguntar ao meu porteiro”.

Recebi uma negativa junto com uma colocação que me deixou ainda mais perturbada: “ela está andando a manhã toda por aqui por perto. Vai, volta, fica olhando os prédios e balbuciando algo. Acho que está perdida.” Novamente a olhei. Percebi que por baixo do grosso e longo casaco preto ela estava de pijamas e pantufas.

E ninguém a procurou até agora? Pergunto eu, recebendo nova negativa. Bom, era meu horário de almoço. Então resolvi que iria com ela de prédio em prédio até achar onde morava. Iniciei pela minha rua mesmo, que tinha uns seis prédios só na minha quadra. Depois fui dando a volta no quarteirão, fazendo um redemoinho com a senhorinha a tiracolo, o que prolongava mais o tempo, pois os passos incertos me preocupavam. Suas mãos trêmulas, com dedos magros e quase azulados, volta e meia passeavam por seus cabelos branquíssimos desalinhados.

Na terceira volta do redemoinho, a três quadras de minha casa, o porteiro de um prédio me chamou, ao me ver quase entrando no prédio da frente. “Dona Endaira, aqui!” Vi que a senhora parou. Parei também. O porteiro veio e me disse que a senhorinha morava ali, no Edifício Creta. Que eu podia deixar com ele.

Ao ver o olhar assustado da senhorinha resolvi que deveria entregar eu mesma à família e insisti neste ponto com ele. Após um tempo, ele interfonou para o apartamento do sétimo andar, dizendo que a Dona Endaira estava acompanhada.

Permitiram a minha subida. Ao entrar no elevador percebi que a senhorinha tremia muito. Fiquei imaginando que as ondulações que percorriam seu corpo eram por estar reconhecendo o ambiente.

Toquei a campainha e um rosto juvenil escancarou a porta, sorrindo pra mim e para a senhorinha. “Vovó querida! Que susto que me deu!” E me explicou que a vó havia saído enquanto ela dormia, de manhã cedo. Feliz por ter cumprido meu dever, por ter dado àquela senhorinha um presente (seu retorno ao lar), sorri e me despedi dela, que me deu um abraço tão forte que jamais imaginaria para um corpo tão frágil.

Fecharam a porta e apertei o botão do elevador ao mesmo tempo em que escutei um barulho surdo vindo de dentro do apartamento, seguido de uma voz ríspida: “Que merda vovó. Já falei pra você não sair daqui!”


*Publicado originalmente no blog: www.novelosnadaexemplares.blogspot.com



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Maestria



Perto de minha casa mora um “louco” (é assim que ainda chamam estas pessoas?)

Toda vez que passo pela casa dele e ele está ali na frente, em pé, no portão, ele me dá um OI sonoro e feliz, acompanhado de um sorriso maior que o mundo. E este OI e este sorriso sempre levantam minha alma.

Um dia ele estava ali, mas ocupado. Percebi que seu olhar estava para o alto e, como em uma pegadinha, também olhei para a direção de seu olhar. Só então reparei nos passarinhos alegres que estavam cantando e pulando, na árvore e nos fios dos postes. Retornei meu olhar para o “louco” e vi que ele pegara dois gravetos do chão e estava regendo.

Sentei na calçada e fiquei ali, observando a maestria do homem e a virtuose dos passarinhos. Foi uma bela sinfonia, iniciando com movimentos rápidos de vários naipes de cordas (vocais), indo para um segundo instante mais lento, com pausa de algumas aves, acompanhado de um minueto (ou seria scherzo? – como eu queria entender de música) com assovios mais fortes. Acompanhando tudo isso as revoadas de uns quantos pássaros fazendo um balé no ar. O finale foi semelhante ao início... um verdadeiro espetáculo.

Juro que todos eles seguiam as orientações do maestro compenetrado, pareciam hipnotizados pelos gravetos mágicos.

Por fim, ao sinal de finalização, os pássaros pararam. Ele olhou para mim, sorriu e deu seu OI costumeiro.

E eu?

Levantei a aplaudi... por 21 minutos.



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SOBRE A AUTORA


Susan Blum Pessôa de Moura, nascida em 04-09-1963, professora universitária por mais de 25 anos, escritora. Formada em Psicologia (PUC-Pr) e em Letras (UFPr), com mestrado em Estudos Literários (UFPr) e doutorado não finalizado em Estudos Literários (USP). Tem diversos artigos publicados em revistas acadêmicas e um livro de contos: Novelos Nada exemplares (contos, 2010), participou também de três antologias: Então, é isso? (contos, 2012); Tuíra (poesia, 2020), Quam sacer cruor (poesia, 2021) e faz parte da Coletânea de Contistas paranaenses (Biblioteca Pública do Paraná - 2014). Faz parte do Coletivo Marianas (mulheres escritoras) desde sua fundação. Seu blog: www.novelosnadaexemplares.blogspot.com




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