RITOS DE UMA PASSAGEM PELO RECIFE DOS “XANGÔS” [1]
Fotos por João Urban
Texto de Jussara Salazar*
“Nagô, nagô
Nossa rainha já se coroou!...”
Ao chegar em 2013 a Recife João Urban traz consigo o mesmo olhar, ou gosto, ou ainda o saber que em terras de Espanha também sabe a sabor, gosto de gostar de aromas e cores,
no caso gosto pelos saberes desta terra onde cultura, festa e religiosidade se confundem.
Profano e sagrado, ritual e dança, elaborações de uma síntese luxuosa, naquele sentido da riqueza de signos que, em Recife sopram com a brisa naturalmente.
E assim, Urban chega a estes lugares através dos tambores do maracatu, vistos e ouvidos nas velhas ruas, nas esquinas do “antigo”, soando misturados à brisa do rio e do mar entre as pontes. Recife ponte entre cultos e culturas, cultivos, tradição e a resistência que levou o fotógrafo um dia à Comunidade do Bode no bairro do Pina onde plantou seu olhar e sua câmara experientes no convívio com o humano.
Sim, seu trabalho como fotógrafo desde a resistência em 64 e posteriormente povoado de boias-frias, tropeiros e mestres da congada foi realimentado pela convivência com o baque do maracatu Porto Rico, que ali tem sua sede, no acolhimento que recebeu da rainha Mãe Elda de Oxóssi, no Ilê Axé Oxóssi Guangoubira, que hoje tem a frente o Mestre e Babalorixá Chacon Viana de Xangô e a Mãe pequena Edileuza da Oxum.
E sabe-se que os espaços e os mistérios de um Ilê são segredos da sagrada Mãe África, heranças trazidas pelo seu povo em forma de culto, com suas loas e cantos, ervas e signos, panos e palhas da costa, riqueza de saberes que só aos iniciados é permitido partilhar. Urban, pela profundidade e intensidade de seu trabalho foi aos poucos conquistando um lugar a partir de um ângulo raro nesse universo fechado, por se tratar de um espaço de ancestralidade e espiritualidade. A comunidade o recebeu e assim foi possível iniciar o grande trabalho de seis anos fotografando praticamente todas as festas, desde as obrigações de carnaval até os toques de cada Orixá na casa.
Todo esse material, imenso registro etnográfico e fotográfico encontra-se aqui representado nessas 13 imagens [2], nesse 13 mágico que evoca a herança afro-religiosa e afro-cultural que, por ser tão cara como registro tanto fotográfico como humano, revela o interior e a emoção entre o corpo e o espírito. Aqui encontramos a natureza em sintonia com seus elementos vitais, através do uso que o candomblé faz de um retorno às raízes mais profundas, não apenas das culturas vindas de África, mas de igual maneira da memória das culturas ameríndias, nesse caso irmanadas com sutileza e adoração pelo sagrado saber da Jurema e dos mestres e mestras.
Hoje, quando vivemos um momento em que a intolerância religiosa se apresenta de forma violenta em ataques aos terreiros e casas de culto afro-religiosos, esse conjunto de
fotos significam uma atitude não apenas de resistência, mas também de respeito que João Urban propõe como o fotógrafo que desde sempre se irmanou com todas as lutas pela dignidade humana, produzindo suas imagens e sempre ombro a ombro no diálogo com o povo das ruas e nas comunidades populares. Sua passagem por Recife, portanto, traduz-se num rito único e solidário. E se reflete em não apenas um, mas em todos os terreiros e caminhadas de luta empreendidas pelo “povo do santo”. Asé!
*Publicado originalmente por Arteplural Galeria no livreto “João Urban: fotografias de João Urban em Pernambuco, a paisagem e o sagrado”, em 2020.
[1] Cultos de origem africana praticados no Haiti e em Cuba (vodu, santeria), e no Brasil (candomblé: crença e festas religiosas originadas com os negros jeje-nagôs, na Bahia, e os bantos). O “xangô” (Alagoas) e o culto shango de Trinidad derivam de Xangô, poderoso orixá, “um dos mais populares, prestigiosos e divulgados orixás dos candomblés, terreiros, macumbas do Recife ao Rio Grande do Sul”, segundo Câmara Cascudo. Xangô, ou Shango, é uma presença forte no continente ou nas ilhas americanas, onde quer que os povos de origem africana tenham se fixado a partir principalmente do século XVIII. Fonte principal: Alaôr Eduardo Scisínio, Dicionário da Escravidão. Léo Christiano Editorial, 1997.
[2] Nesta edição, selecionamos cinco dessas fotos.
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João Urban (Curitiba PR 1943). Fotógrafo. Começa a fotografar como amador por volta de 1964, quando registra passeatas, manifestações populares e grupos teatrais em Curitiba. No fim dos anos 1960, profissionaliza-se nas áreas de publicidade e fotografia industrial. Paralelamente, realiza ensaios sobre presidiários, pescadores e operários de uma fábrica de cimentos no Paraná. Desde 1973, participa de exposições no Brasil e no exterior. Entre 1977 e 1980, documenta trabalhadores agrícolas diaristas, o que dá origem aos livros Bóias-Frias, Tagelohner in Süden Brasiliens, 1984, publicado na Alemanha, e Bóias-Frias, Vista Parcial,1988, lançado no Brasil. Participa da 14ª Bienal Internacional de São Paulo, em 1977. Em 1981, expõe na Galeria do Instituto Nacional da Fotografia da Fundação Nacional de Arte - Funarte, no Rio de Janeiro. Na década de 1980, inicia o projeto de documentação do Caminho das Tropas, estrada que vai de Viamão, Rio Grande do Sul, a Sorocaba, São Paulo. O resultado é reunido no livro Tropeiros, 1991. De 1980 a 1988, retrata imigrantes poloneses e seus descendentes que vivem em cidades paranaenses. Essas fotos são mostradas na Polônia, em 1987, e reunidas no livro Tu I Tam: Poloneses Aqui e Lá, 1997. Recebe o Prêmio J.P. Morgan de Fotografia, em 1999. Entre 1999 e 2002, registra festas religiosas na cidade de Aparecida, São Paulo, junto com Suzana Barretto (1963). O trabalho é publicado no livro Aparecidas, em 2002.
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