O TEMPO DE LANIFER
Lanifer deixa a sala. Posta-se à porta da varanda. Contempla as árvores, cada qual com o seu verde imenso. O tom do verde às vezes desce pelo tronco, aninha-se entre as raízes, menino em fuga, fera a ouvir um latido não muito longe. Lanifer senta-se na cadeira de balanço. Ela range. O ruído infiltra-se na pele do homem e ali provoca certas ondulações secas. A pele de Lanifer já se embruteceu. Está mais para o marrom, fuga do fogo de pilha de lenha meio úmida, barco ancorado sem muita convicção ao embalo da água fervente, da água que matou os peixes, da água de antiga ruína. Lanifer tosse. Não tira os olhos das árvores. A tosse é quase arpejo de monge no corredor sombrio, a tosse apresenta ritmo e o ritmo desdenha da harmonia. O velho passa a mão pelo braço esquerdo. O braço certa feita tão firme. Agora fraqueja? Talvez. O rangido da cadeira não impede Lanifer de olhar árvore por árvore e meditar: o tempo é pétala acetinada. Pétala acetinada que aos poucos se torna áspera. Assim o tempo muda, assim o tempo acompanha o que foi fera, o que foi manso. Lanifer prefere não avaliar o estado pessoal ao longo da pétala. Sabe que ela pode abocanhar os tecidos meio transparentes de cada esquiva cometida, sabe mover o moinho e da pedra de mó tirar a farinha que mal alimenta. Agora Lanifer tem a mão ao longo do braço direito. Braço direito. Envolveu tanto, expulsou outro tanto e está ali, meio forte, meio tênue, assim o inseto no canto da madeira. Os dedos também falam. Lanifer os emudece. Agora importa a meditação: o tempo é chicotada vinda direto do ar e cai assobiando, cai a manquitolar sobre o cérebro, desliza pelas orelhas e pescoço, concentra-se no peito. Ali o tempo efetua o ninho dos adereços. O ninho. Sobre o peito. O peito de Lanifer é ainda abaulado. Ali recolhe os terrores. Ali recolheu noites de profundas tréguas diante de certas exigências. O velho sabe que deste ninho podem brotar ovelhas ou mariposas. Aquelas balem ao subir o morro, estas esvoaçam em torno dos olhos sem conseguir empaná-los. Os olhos de Lanifer nunca foram obscurecidos. Como agora acoplam-se às árvores, em outras épocas ajudaram as engrenagens a andar. Dói cada rasgo de ferro contra ferro. As engrenagens a perder a umidade e, ressecadas, travar o caminho. Lanifer sabe disto e não se importa. Importa considerar o tempo: bacia ovalada em que se resguardam restos ou começos, bacia em que se escondeu o menino, em que pulou a menina naquele tempo. O tempo. É mais dragão de olhos arroxeados. O tempo assim esticado entre os abismos, sobrevoando crateras e cavernas, pois é próprio dele desandar as dunas do que arrumá-las. Assistindo às árvores, Lanifer ausculta o tempo do silêncio. Há camadas de silêncios noturnos e diurnos sobre a pele do tempo. O tempo que aquece e logo depois esfria. Um grau, muitos graus. Fazer considerações nem sempre é tarefa fácil. Lanifer não pretende filosofar. A ele apenas interessa o dorso do tempo, a concretude das horas imiscuídas com fatos e seus desdobramentos. Lanifer, aos 71 anos, pode muito bem arvorar-se em contemplador ao analisar o balouçar das árvores e dali tentar arrancar a definição que nunca virá. O tempo – tempestade, fluxo, redemoinho. Após a tempestade este encanto, o menino a nadar no rio. Dentro do fluxo a menina de amarelo. Além do redemoinho a circunferência a cercar os dois. Desdobramentos. Pelo andar da dança, as árvores movimentam-se e não perdem o lugar. Lanifer também. Ele sempre soube do seu lugar e ali permaneceu como está aqui – a varanda, o céu cinza, o frescor das folhas a brilhar – mundo novo mesmo inaugurado há séculos. Aqui o ato de contemplar, analisar, pensar. Ser o sistema de nervos responsivo ao ar do campo, aos incentivos do entorno, à minúscula formiga a subir pela perna. Agora o mão vai em busca da coxa esquerda. O tecido da calça parece esfarinhar-se. Quem a costurou? O velho sequer arrisca a lembrar. São fatias do passado e o passado desdobrou-se em esquecimento. A mão rude pousa meio pesada sobre o tecido morto. Porque o tempo tem estas máscaras: rudeza, acinte, arrogância. Ser no tempo é ser em viagem, ele sabe, ele garante que é e ali está instalado em nome de nada temer, nada a aborrecê-lo. O tempo é a maré incendiada por peixes de beiço longo. Longo é o beiço do tempo estirado da varanda até as árvores, o espaço entre elas. O ar perpassa por elas e ele tateia a configuração de contornos que aprecia. A árvore única, a espécie representativa. Sabe contar com elas a fim de montar a paisagem. A paisagem do tempo. O escaravelho arranha a terra escura, recheada de umidade. É pérola baça com pernas. Seu brilho fustiga o olhar de Lanifer, não muito preparado para coisas triviais. Mas o menino veio e sentou-se sobre a perna esquerda do vô. A menina veio e sentou-se sobre a direita. Ambos cheiravam a sabonete. O avô tocou o cabelo deles um tanto molhado. O tempo era patranha que não chegava até eles. Cifra ainda desbotada frente àqueles corpos meio tênues, sem muita firmeza para a gritaria. E corriam endiabrados entre as árvores. Subiam nelas. Caíam. Curativos em cotovelos e joelhos. O livro de meu filho: crianças fazendo xixi colorido. Outro livro: o garoto que busca identificar ruído estranho ao longo da noite. Outro: o menino que ansiava por maçãs e ao experimentá-las teve decepção marcante. Meu filho escreve para crianças e foi capaz de tal ato. O tempo não retrocede. Todos sabem. Inexiste meio de corrigir a ação, corrigir o definitivo com seus laivos macabros. O malfadado tempo bate asas sobre os olhos de Lanifer. Olhos intensos apesar do pouco brilho. Olhos a decorar as árvores robustas que induzem o verde até o velho. As pálpebras batem céleres. As pálpebras – pele de concha nutrida pelo mar e esquecida atrás do armário. Elas talvez não lubrifiquem mais aqueles olhos, em especial depois do que constataram. O menino e sua gargalhada frente ao chocolate. A menina quase nunca ria e gostava de ouvir histórias em que aparecesse algo vermelho. Peixe vermelho. Bola vermelha. Vestido vermelho. Rosa. Morango. Caneta. E assim se entretinham enquanto Lanifer arredondava as mãos nas cabeças deles e bebia o calor com os dedos e o calor abrandava as palpitações. Tenho coragem de viver no mundo real. Aqui. E o mundo real é o tempo. O tempo alargando-se, estreitando-se, compassado, comprimido entre minhas mãos que soletram os netos. No cocuruto dos segredos, na entressafra dos medos. Imensas plantações amarelecidas ao redor. O tempo reflui talvez, é dogma sem carapaça, sem os estigmas, com os tentáculos em torno do pescoço, perfurando olhos, garganta, o ovo pronto a explodir, e claro que explodirá a partir da abóboda da riqueza ou pobreza. A desigualdade. O tecido rasgado. Aí compomos a sinfonia repleta de brechas. O almoço com os meninos. Sempre bolinho de banana. Após a montanha, o ribeirão meio rio, onde a luz apagou-se e a enguia enrolada pelo calor dos tornozelos como a mãe que cuida de filhos durante a tempestade. Rio de fagulhas é o tempo. E o tempo assume as colunas de treva e névoa, eriça-se como condição de pergaminho entre as mãos do alquimista. O tempo alquimista. Clichê. Você sabe, vem e vai, alonga-se, justifica-se com as volutas enervantes de passagem após passagem até mesclar-se aos pretextos que todos têm para contê-lo e não conseguem. Viver resume-se a isto: conter o tempo dentro o oco túrgido, conter o tempo grão a grão até a espécie resumir-se a um único menino apavorado ante o funéreo e a menina, com sua caução suave, vestido amarelo, deixar pela borda do tempo o trepidante encanto de suas notas revoluteando no ar, agarradas pelo menino a fim de mastigá-las depois. A sinfonia num instante enovelada entre as mãos do velho que relembra o tempo, cenas, tece o tempo, barba, as cãs, as rugas. Porque também é da natureza do tempo evolar-se em saturação do tempo. O tempo é mesquinho, caricatura de capítulos encerrados em palácios, casas, casebres. O que há de vir não conta. O tempo do catre, da cama, da entubação. Tempo de signos pendurados em postes – luz apagada, luz acesa. Tempo de engulhos, quando as árvores são muito sacudidas. O velho sabia ir além do canto dos pássaros ali aflantes entre os galhos das árvores e a série de ninhos de estações férteis. Eles, os galhos, corcoveiam. Será seu o peso das nuvens em tempo de cinza? Jamais você pode pensar que o tempo é estátua de sal a desfazer-se nos campos do deserto ou da floresta, quando a lagarta absorve-se sob a areia e desta forma escapa do calor, da ardência, da sapecada, encorpa-se do mesmo modo que o menino enfrentou o espelho com o rosto molhado, os olhos montanhosos, o perfil da face perfeita varando a imensidão da casa. Repartir o cabelo. Remou pela casa, marinheiro-mirim. Ali reconheceu o rosto do pai buscado sem saber. Entre os funis do tempo o avô relembra tudo. Mas para que acalentar lembranças quando o fato ocorrido é imutável. Elas são o piso precário em que nasce a grama amarela, o milho amarelo, a abóbora amarela – formas sutis do fruto temporal. O em que se derrama o fator que trunca uma vida. A grama não serve de alimento aos animais. Faz-se necessário levá-los mais além. Os animais são sólidos e lustram o pasto feito chuva repentina. O tempo dos bichos não é são. Danifica pelos e patas. O ruminar é parêntese entre sóis de setembro. O moldável é o tempo segundo a andança ao norte de cada boi, o norte do velho. Avô,dê um beijo em mim. A bochecha estala. O velho sufraga o tempo entre os dedos, filamentos da continuidade. Todos sabem – os dedos trabalham, plantaram as árvores, apascentaram as árvores e ei-las, o esplendor do grandioso, arrogantes o mandato circunscrito do tempo. Velho e avô. Carinho e ossos enrijecidos. O velho conhece a ciência da vida: as árvores sobreviverão a ele, menos os animais. Algo ficará no após como o menino não ficou. O menino é ruptura, um caroço dentro do rio carregado de correntes no após as chuvas. Lama e gravetos e troncos empalidecidos pela longa viagem. A viagem é modo enganoso de conduzir as fauces devoradoras do que passa. Colocar certo tapume sólido ante a passagem. O avô tomou todas as providências. Os filhos do filho devem estar protegidos. Mesmo quando procurou as crianças da manhã à tarde. A tarde – aquele período malemolente quando a inteligência fica do tamanho da semente. O ovo. A galinha o depositou no terreno atrás do montículo de tábuas. O lagarto surfou com a língua sobre a casca marrom, tomou o garfo e a faca e foi de barco até a degustação. Ouviu o arpejar do vento esfriando sua barriga. Correu. Escondeu-se no galinheiro. Ali o tempo atropela-se pela escadaria dos poleiros. Encontrou a menina deitada sobre a relva, passou sobre a barriga dela, voltou a cabeça e depois sumiu no longe da paisagem. Sentado firme na cadeira o velho sabe de tudo isso e sabe que nada se reconstitui. Aprazível é ser velho, dono das lembranças, dos desdobramentos, dos fatos, mesmo quando doem. Olhou o depois. Conhecer o depois. Olhar atrás de. Agora a mão busca o queixo com algumas dobras. Ele não vive fiapos de tensão por isto. Envelhecer convoca dobras e se a pele está rugosa assim, a pele está assim. O tempo é casca grossa. De tartaruga. A tartaruga é a tarde concentrada. Taça de tempo a aglomerar tempos. Bebida nada gasosa. A tartaruga até sente certa pressa. Todavia a fruta madura é mais saborosa. A fruta cai do galho, do galho da árvore, do arvoredo do avô. Meu filho ganhou prêmio literário de destaque. As crianças nada entenderam. Prêmio? O biscoito do cachorro quando ele segue as instruções ou as supera. O avô tem o menino e a menina entre suas mãos impulsionadas ao veludo. O veludo em acordo com as mãos. As mãos pousam acima da angelicalidade. Dos cabelos os dedos correm ao rosto. O macio contorno. Naquela tarde, ele lembra, o filho chegou alvoroçado. Não explicou nada. Desapareceu com as crianças e demorou-se muito, demais. Então o vizinho veio lento e contou. Os dois corpos a boiar no rio. Foi assim, corte seco. O filho antecipou o tempo. Precipitou o tempo? Do filho nunca mais soube. Os dois corpos pequenos enterrados entre as árvores do bosque concentram todo o tempo, o tempo de arestas a machucar as mãos, os olhos, a triturar algo no ar. Como dar nome ao vácuo da hora? O tempo. Hora após hora. Lanifer estende os olhos até aquele lugar.
2019
2020
2021
POR PAULO VENTURELLI
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