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Foto do escritorRevista Trajanos

Putas horas. Lentos gestos, um conto de André Soltau



Putas horas. Lentos gestos



Acabara a noite. O sol trouxe o silêncio e lentidão. Somente o canto do sabiá por trás da cortina vermelha. A madrugada intensa deixou marcas. Queria eu falar e ver. Me foi reservado o direito de apenas ver. O que foi um oásis. Desenhei sem pressa. Minha manhã estava cheia de cores e corpos cansados. Solidão enojada, espiava pela fresta estreita da cortina.

Estendi o papel alvo sobre o tapete carcomido em cores desbotadas. Escolhi o lápis e tracei o corpo que dormia exausto. Suas pernas brancas contrastavam no lençol violeta. Não havia pudores ali. Ela deixou à mostra intimidades no sono solitário. A cama havia recebido poucos na noite passada. Não dei ouvidos aos julgamentos da Solidão que saltitava para ver meu desenho em processo no papel posto ao chão.

Troquei o foco para seu rosto coberto pelos cabelos vermelhos preso ainda pela flor amassada. Batom exagerado manchava a fronha. Moedas postas em um pote plástico me atraiam para o conjunto da cena. A ajuda para o ônibus, pãozinho e troco. Riscava atencioso e com calma. Não queria perder as cores. Elas fogem com o movimento da luz.

Solidão gritou uma palavra forte lá fora. Assustou os pássaros que voaram apressados.

Fiquei comovido com a cena esquecendo os traços. Uma imagem solitária e nova. Tempo lento e corpo disponível. Sempre está disponível para aquele que paga. Eu, em um canto sentei na cadeira torta de cor desconhecida. Um forte cheiro de suor me causava náuseas antes do café. Só interessei pela imagem, em cheiro ou juízos.

Vendo a cena bucólica, Solidão entrou pela janela. Postou seus olhos para meu corpo entregue ao instante enviando palavras macias para a moça nua e só. Temi por seu agressivo julgamento. Lenta muito lentamente sentou na ponta da cama, puxou o lençol em cor de mortalha e aconchegou abraçado ao corpo de tantos.

Não me contive, abracei o momento com voracidade e traços. Encontrei naquela cama povoada de tantos corpos uma imagem singela de Solidão e uma puta nua. É preciso coragem para trocar carícias sinceras com a mulher só. Minha amiga Solidão pintou em minha frente o seu mais bonito gesto. Beijo os pés da alva pele entregando ali seu mais profundo ato lascivo. Casta era a puta. Cadela foi Solidão. As duas compuseram meu melhor traço. Agradeci o encontro de opostos. Intensidade na manhã preguiçosa.



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SOBRE O AUTOR


Escritor que lançou recentemente o livro de crônicas Dobras. Escreve a coluna Esquinas no jornal Diário do Litoral (SC) e assina a coluna Conto a Gotas na Revista TXTMagazine (Curitiba/PR). Tem, no prelo, a coletânea Palavra d'Água: Correntezas e Marés.

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