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Um conto e alguns poemas de Roberto Prado


Do auto-atrapalho à culpa dos outros: a arte de dar errado


De certo modo é reconfortante saber que o costume de dar com os burros n’água e ver a vaquinha brejeira atolada até o gorgomilo não é um problema pessoal, mas característica profunda da alma brasileira.

Atire o primeiro projeto gorado aquele que dentre vós nunca fracassou.

Por isso, não fique triste, não se zangue, sossegue o coração: esse tropismo ancestral para o infortúnio não é motivo de vergonha ou constrangimento. Não precisa discutir com a patroa ou o maridão, bater nos filhos e sair por aí atropelando velhinhas na calçada por uma coisinha à toa dessas. Sem escândalos e chiliques, por favor. Afinal, não é culpa de ninguém.

Fracassamos, sim, e daí? Talvez seja um resquício do carma coletivo pelos pecados da escravidão o que nos leva a achar razoável comprar uma kombi para puxar banana caturra de Antonina, empacotar farinha suruí de Guaraqueçaba, distribuir pinga com mel de Morretes. Quem sabe as atrocidades cometidas contra os paraguaios ainda atraiam espíritos vingativos que nos cochicham para investir em avestruz, plantar pupunha, abrir aquela pousada em Matinhos ou mais um bar em Curitiba.

E essa pressa de enfrentar o muro com a cabeça, essa disposição de abrir caminho para o abismo, essa ânsia de esmurrar pontas de faca, essa vontade de pegar o touro à unha, essa coragem involuntária de passar a mão no traseiro do Mike Tyson – tudo isso não pode ser considerado também um grande fator de integração nacional?

Portanto, nada de ficar lamentando igual a um maricas. Você não é melhor do que ninguém por ter duas ou três firmas enroladas, pessoas jurídicas que, aliás, jamais sairão dos registros oficiais, pois está cientificamente comprovado que é impossível fechar uma empresa neste país.

Se a paciência do Biden permitir e o mundo sobreviver a 2021, o seu tropeço ficará eternamente a engordar os números da nossa economia, alimentando as estatísticas positivas e comprovando a espetacular habilidade dos nossos governantes em sua santa tarefa de disseminar o espírito empreendedor nas massas. Chega de mimimis, pois esta é a terra de um povo que, na beira do abismo, sempre arranja fé para dar um passo frente.

E se o Brasil levar a Copa outra vez? E se aparecer outro João Gilberto? Ou o novo Santos Dumont? Isso não será uma ofensa à nação, espécie de humilhação coletiva, sucessos capazes de esmagar gente como a gente, que usa as pilhas de recibos e cartões das firmas falidas para anotar recados e nivelar o pé do armário? Nada disso. Basta lembrar que os nossos clubes são tão perdedores que pouquíssimos artistas da bola jogam no time nosso ou no time teu - sequer moram no país do futebol. João Gilberto, aliás, foi catapultado pelos States. Dumont vivia na França.

E para que você fique totalmente reconfortado, saiba que o caneco mundial do empreendedorismo é verde e amarelo: são mais de 500 mil novos negócios abertos por ano. Recorde absoluto. Mas, como não deixamos por menos e queremos ser campeões em tudo, cerca de 450 mil dessas portas se fecham antes de completar 12 meses, marcadas pela asa do corvo, levadas no bico do urubu e arrastadas para as profundezas pela tsunami constante dessa maré de azar. Sorte nossa: é nós na fita, é o Brasil na frente, é outra medalha de ouro para a coleção.

Devagarzinho, quase sem querer, socializamos o azar. Quando não chutamos direto na bandeirinha de escanteio, tudo sempre dá na trave para todos, indistintamente, pois ela é grossíssima, o gol é pequeno, o goleiro é imenso, a bola é quadrada e o gramado também não ajuda.

Pobres e ricos, irmanados, estão fracassando e andando juntos por este país-continente. Os humildes querem ir dar banho em defunto no exterior, talvez voltar com uma bela bolada e abrir a franquia estrangeira que estiver mais em conta. Os posudos da indústria esperam que, no último minuto da prorrogação, chegue aquela multinacional para injetar uma grana preta nas suas outrora prósperas marcas e, de xepa, sonham emplacar um emprego de executivo na ex-empresa, pois – não é nada, não é nada – ao menos aparece na televisão. A gringarada, mesmo sem entender direito o que se passa, compra tudo e ainda paga mais do que valemos. Pedem logo dois, um para comer no local, outro embrulhado para viagem. Lá de onde eles vêm ninguém gosta de ser chamado de “loser” – felizmente um termo sem tradução em português. Então, dão a maior força, que é para a gente não ficar na pior.

Agora, me desculpem, vocês são muito boa gente, o papo estava ótimo, mas eu tenho que resolver uns negócios, acertar com o contador, passar na prefeitura, tirar licença, comprar um carrinho, falar com o vereador, conseguir um ponto. Pois com essa minha ideia genial do cachorro-quente de três vinas não tem erro: é correr para o abraço. Ou para a fronteira do México.




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Um blues


antes brigava com treva

até tropeçar no sol


agora sento com ela

e espero a hora do show


para quem conversa com névoa

a noite é azul




A náusea


a ratarada se comendo

reproduz de montão


vendo a cena de longe

os pandas perdem o tesão




Economia de estacionamento de mercado


Um pequinês de Taiwan

Casou com a Dona Carochinha

Numa igrejinha de Hong Kong


Deles nasceu a Joaninha

Que cuida de carros na Liberdade

Pois em Macau ainda existe carrocinha



maré de si


A memória melhora

o que o mar levou.


Saudade das tolas hemorragias

jorrando da terra do nunca

para as ondas sem coração.


Virar areia é preciso.

Às vezes volta à praia

o sangue do que já foi.



morro e não vejo tudo


O futuro olhou para trás e virou rocha.

Nele, os momentos duplos,

sob montes de ontens,

rolam nas encruzilhadas.


O passado ainda espera

que você escolha certo

entre pedra e pedra

o peso de seguir adiante.


Nada vai embora, a não ser os janeiros,

como penas que não têm volta.

O resto é vida que segue,

carregando a própria estátua.



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SOBRE O AUTOR


Roberto Prado nasceu em Curitiba (agosto de 1959) e desde muito cedo atua nas áreas de poesia, teatro, propaganda, jornalismo, música, rádio, cinema e televisão.

Tem diversos livros lançados e é compositor de muitas canções gravadas por dezenas de intérpretes e bandas, além de integrarem trilhas cinematográficas. Sua última publicação em livro foi Amplo Espectro, em 2019, que também tem versões em e-book e audiolivro.

Foi destacado como um dos 100 mais importantes escritores dos150 anos do Paraná (Antologia das Escritas Poéticas do Século XIX ao XXI – Organização de Ademir Demarchi, Edição da Biblioteca Pública do Paraná – 2013).

Jurado em diversos certames musicais e literários, palestrante em inúmeros eventos.

Escreveu prefácios para diversos livros, além de estar presente com textos de abertura em muitos programas de peças teatrais, exposições de arte, catálogos de artistas plásticos, dvds e cds musicais.

Publicou por mais de dois anos a página mensal de cultura, literatura e artes gráficas Bem-me-quer/Mal-me-quer, no jornal Gazeta do Povo (1996-1999).

Colocou no ar mais de 400 edições de documentários radiofônicos de uma hora sobre a história da música brasileira.

Publica regularmente a série Robertos, poemas sobre obras fotográficas do jornalista e blogueiro Zé Beto, com design de Solda.

Além de atuar nas mídias tradicionais, realiza relevante trabalho de divulgação de cultura literária e musical em eventos físicos e diversos meios digitais.


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