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Foto do escritorRevista Trajanos

Um poema e dois contos de Kleber Bordinião


vermelho

abre o sinal pra mais um índio botar o balaio na minha cara pra botar mais um índio no balaio dessa laia sinal de bala, sinal de bêbado mais um balaio pra gente da rodoviária que desce apressada boa e beata e no mesmo balaio da calçada que virou taba sexto cesto nessa semana faz sinal pra que saia a criança rubra sem sinal de rara bota no mesmo balaio da do sinal que para e pede raspa rala rala rala esmola moda do mesmo balaio do velho na rua do raio do rosto sujo na minha cara bota no balaio da bala do bandido e abre o sinal verde.


***


Tenazes


Lá em casa tem! Disse o mais novo. E lá se foram os três pra casa dele. O que não ia pra escola há um certo tempo estava descrente, conhecia o histórico de mentiroso do amigo. Já o que fumava estava eufórico. Fora ele quem havia dado a ideia. Um colega da escola tinha experimentado no fim de semana, enquanto pintava o próprio quarto. Dá uma pira massa e todo mundo tem em casa. Pode ser cola de sapateiro também, acho que é até melhor. Só não dá pra ser aguarrás, dá uma dor de cabeça filha da puta. E agora, já que o amigo disse ter em casa uma lata inteira na garagem, não custava nada pagar pra ver. É tranquilo, minha mãe está lavando roupa, a gente vai na garagem coloca um pouco numa sacola e vazamos. O mais velho continuava desconfiado, Por que vocês têm uma lata de cola de sapateiro fechada em casa? Sei lá, pra alguma reforma, minha mãe vive dizendo que é sempre bom ter as coisas em casa pra não ter que sair comprar quando pintar uma emergência, mas se você não quiser, não precisa ir. O que tinha quinze anos tratou logo de colocar panos quentes, Certeza que não tem perigo da tua mãe pegar a gente em flagrante? Não cara, fique tranquilo, já disse, ela vai tá lavando roupa.

Os três chegaram e foram direto para a garagem. A porta de ferro fazia um barulho alto o suficiente para que qualquer pessoa nas redondezas ouvisse. Mas o barulho da mulher esfregando a roupa contra o tanque não se modificou quando o grupo entrou no cômodo. O menor deles não alcançava a última prateleira da estante de madeira em que estavam os 3,3 litros de cola de sapateiro, foi preciso que o deles que morava com a vó se erguesse nas pontas dos pés e descesse ainda desconfiado a lata. Abre aí, quero ver se é mesmo. Enquanto procuravam alguma coisa pra abrir a tampa, nem repararam o fim da fricção dos panos lá no quintal. Quase que ao mesmo tempo em que o filho conseguiu destampar a embalagem, a mãe rangia a porta de metal. Oi, meninos, o que estão fazendo?

Nem a cara de terror dos amigos abalou a tranquilidade do que tinha uma irmã mais velha, Oi, mãe, estamos pegando cola pra remendar o pneu da bicicleta. A desculpa de improviso veio sem a informação completa, mas o que bebia pouco completou, Da minha, tia, furei num prego lá na frente de casa. A mulher andou na direção deles com cara de reprovação, Eu não acredito que vocês no que estão fazendo, não sabem que isso é tóxico? Virou-se em direção à porta da cozinha que se ligava à garagem e voltou em alguns segundos com uma embalagem vazia de iogurte, agachou-se e enquanto perguntava se um copo só era o suficiente, derramava o líquido viscoso na sacola branca que o filho ajudava a segurar. Os outros dois boquiabertos ainda assentiram com a cabeça quando ela fechou a sacola com um nó frouxo e destacou que o copo deixado na lata havia derretido. Viram só? usem alguma coisa para passar no pneu tá? Na câmara, mãe. Corrigiu o que não fumava.

O combinado era esconderem-se numa das casas que estavam sendo construídas ali num terreno próximo. Nunca ninguém entraria ali, ainda mais que já estava anoitecendo. As casas estavam na fase inicial de construção. Todas as paredes estavam erguidas, mas sem nenhum acabamento, também não havia portas nem janelas. Escolheram uma em que um dos vãos de janela possibilitava sondar se alguém descia a rua, ou, se caso alguém aparecesse do outro lado, pudessem fugir pelo mesmo espaço na parede. Comentando a sorte que tiveram na garagem, e aproveitando o que restava de luz natural, deram uma conferida no conteúdo do plástico. É isso, quem vai primeiro? Perguntou o que faltava ao para jogar vídeo game. O que não conhecia o pai se ofereceu e foi pegando o saco. Não sabia direito como fazer. Só tinha visto aquelas reportagens na TV com crianças de rua, nas escadas das igrejas baforando pacotes de leite. Sem jeito, abriu a sacola e aproximou a boca semiaberta, aspirou um pouco e sentiu uma forte ardência por dentro das bochechas e descendo a garganta. Soltou o ar ali dentro mesmo e inalou novamente agora com a ajuda do nariz. Uma onda quente que nascia de trás das orelhas e passava pela nuca, desceu a coluna. Continuou o ciclo inalando e exalando cada vez mais rápido, surgiu um anel escuro limitando as bordas da visão e a audição ficou mais apurada, ouvia detalhes do mundo a volta, marcado com o ritmo quase sexual do ronco mecânico da sacola se expandindo e murchando. No auge, tirou a sacola do rosto e de olhos arregalados enxergou pelo furo da cortina preta duas pessoas descendo a rua. Era a polícia, teve certeza, podia ouvir a conversa deles, olha lá os mendiguinhos cheirando cola!, seriam presos e sua mãe teria que buscá-lo na delegacia, que cagada!, tinha que fugir, virou as costas para a janela e se jogou na parede da construção na tentativa de escalar a barreira e se perder na noite. Não encontrava nenhuma reentrância nos tijolos para apoio, seus dedos escorregavam sem sucesso, pulava tentando alcançar linhas mais altas e na volta o cimento entre elas feria o interior dos antebraços, só então percebeu que ainda segurava a sacola, não se desfez dela e continuou em repetições cada vez mais desesperadas, que esfolavam agora também as palmas de suas mãos e seus joelhos, ao fim de cada tentativa falha, conferia se a dupla ainda descia a rua, e realizava a proximidade gradativa da tragédia, passou a falar cada vez mais alto, A polícia, a polícia, a polícia, foi quando o que ia de vez em quando pra escola e o que foi criado pela avó seguraram ele pelos braços até o efeito do inalante passar.

A dupla de policiais, um casal que provavelmente procurava também a privacidade de uma daquelas construções, assustou-se e sumiu rua acima. O que não conhecia o pai nem ficou pra ver o que os amigos fizeram com a mistura de adesivo de contato e saliva, e ao chegar em casa confuso e escondendo os arranhões pelo corpo, nem percebeu o quão pareceu estranho aos olhos da mãe o filho escovar os dentes antes de jantar.



***


sapiens


um ser humano segura, em pé e por horas, a placa com o rosto de outro ser humano, pra que este ser humano, se eleito, dê condições a outros seres humanos, de não mais precisarem segurar, em pé e por horas, placas com os rostos de outros seres humanos.




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SOBRE O AUTOR


Kleber Bordinhão nasceu em Ponta Grossa-PR. É autor de livros de poesia e crônicas.



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