Tenho cravado no peito o peso de um punhal vazio, uma lâmina sem fio crua rasgando-me o peito já corrompido pelos traumas das palavras ditas que eu guardei o som o tom, o amargo de cada verso, escarrado cuspido rastejei pelas frestas de corpos onde não me coube existir onde meu ser escorreu pela ponta dos dedos dos desejos imundos e vazios num monólogo em prantos e rios eu quis ecoar a falta que me faço desde que de mim parti e tentei em vão habitar outros corpos vazios vagueei desnorteada pelas frases de amor
em mim abandonadas a beira do ouvido que nunca me foram ditas nem sequer sussurradas corri e me escondi no calor de memórias velhas histórias em busca de proteção qualquer saída da insana solidão que esmaga fere com fogo e bala o peito que arde sangra em carne viva clama
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Extra
A quem vá dizer que não se escolhe quando nascer, mas ela o fizera, escolhera o dia e a hora, perto do pôr do sol, e escolheu não chorar, como se já soubesse que haveria em vida muita lágrima para derramar e não queria começar no seu primeiro dia, talvez algumas horas depois, quando a confusão da existência se fizesse presente em seu estômago infantil que se contrairia de fome, uma sensação até então desconhecida, mas a qual não demoraria a se acostumar, não chorou outras vezes mais, mesmo em tão pouco tempo de vida, esperou por sua vez, mesmo ciente que o choro lhe traria com mais rapidez o conforto de um estômago cheio, ainda assim esperou, esperou como se o fantasma da vida já lhe tivesse soprado aos ouvidos que nem todo conforto valia a tristeza que o choro agudo lhe acarretaria, tristeza essa a qual descobriria muito em breve. Observei sua pequena existência, de corpo, braços e pernas, era miúda, muitos diziam ao se aproximar do rosto pequeno envolto em cobertas que ganhara de uma tia cujo filho não usava mais, outra coisa mundana a qual se acostumaria em breve, o que já não serve a outro lhe caberia muito bem. Agoniava-me o seu não chorar, havia dias que precisava me conter para não lhe beliscar as pernas e lhe fazer emitir qualquer ruído que pudesse despertar a atenção e o interesse de alguém em te alimentar, mas não me cabendo a existência física humana eu apenas observava. Mesmo quando mais velha já em posse do saber pronunciar as palavras, mantinha-se em seu estado de espera, esperando a hora em que o mundo lhe daria migalhas de atenção enquanto tapava os ouvidos para não ouvir o próprio estômago reclamar da solidão. E assim tão logo cresceu, ainda de corpo miúdo e pernas finas atravessou os primeiros anos da infância, encontrando a companhia do coração partido que lhe acompanharia por toda a vida, não pude evitar o aproximar daquela tragédia, estendi meus braços em sua direção tentando amenizar o impacto, um osso quebrado doeria menos, pensei no instante em que seu corpo me atravessou, mas seu olhar nem por um segundo me encontrou, lembro bem do seu olhar naquele dia, eu estava de joelhos engasgado com o choro que você guardava, eu quis gritar, te apanhar, te levar para longe, mas você se manteve em pé, com a face serena e o peito em carne viva, daquele momento para sempre ninguém além de nós saberíamos. O tempo nos atravessou com unhas e dentes agarrado a nossa alma, cruzando nossos corpos com a violência de mãos que nos tocaram sem pedir permissão, seus cabelos longos agora encenavam um teatro de fios curtos e livres, queria lhe dizer que de longe ainda parecia miúda, mas que vista de perto havia se tornado gigante, tão grande que minha presença já não se fazia mais necessária, e naquela noite, já na idade adulta, enfim você chorou todas as lágrimas do oceano que havíamos atravessado, entre soluços e trovões pois o céu havia te escutado e sentido a sua dor, entre um relâmpago e outro que atravessava as cortinas brancas iluminando o espaço que seu corpo ocupava sobre a cama, eu via o seu rosto apertado contra o travesseiro, enquanto a tempestade caía do lado de fora da janela daquele quarto pequeno de paredes recém decoradas e livros empoeirados eu te abracei, te abracei até ouvir seus ossos estalarem, pois tinha a urgência do toque pelos anos atravessados, não lembro quanto tempo ali fiquei com minha presença invisível envolta em seu corpo, esperei a sua espera e fechei os olhos pela primeira vez e pela verdadeira última vez.
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SOBRE A AUTORA
Claudia Fernandes, 29 anos. Abdico do título acadêmico para definir esse início do que sou, sou humana nascida das letras e da poesia. Natural de Ponta Grossa, conheci a poesia pelos versos de Mia Couto, Leminski e minha cara Clarice Lispector, tendo minha primeira leva de versos publicados pela Olaria Cartonera. Desde cedo escrevo, pois penso eu ser escritora desde nascida e ter licença para tal ato, mas o único que me cabe é o de sentir, como um poema cujos versos são manifestos livres do sentir, sinto, e daquilo que sinto, escrevo.
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