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  • Foto do escritorRevista Trajanos

2 CONTOS DE BRUNO EVERTON

Atualizado: 3 de mai. de 2021


O homem e a cidade


Nada de novo me contam essas ruas cinzas. Assim como nada de interessante cantam as bocas de lobo viradas para cima. Tampouco vejo graça, ou interesse, em quem passa do outro lado da rua. Nem mesmo sinto-me convidado a pensar em quem vai virar na próxima esquina. O meu passo é lento, obtuso. Sem rumo, trânsito sob as marquises desses prédios imundos, inalando o gás nada nobre dos cavalos metálicos que se movem relinchando toda vez que pulam algum quebra-molas.

A cidade me entedia. Suas lanças de concreto, quase sempre eretas, apontam para o céu, mas ao serem vistas de baixo, parecem colossos de tijolos que observam o seu andar confuso. Cada pedaço de vidro laminado, um olho que analisa o seu passo, julgando se você vai cair bêbado ou de fome. Desses olhos, somente a indiferença com quem anda aqui por baixo, a democracia só cabe para aqueles que estão por cima. No fim e ao cabo de tudo, só os pombos parecem se importar com o que você carrega no bolso, por mais que seja somente um maço de cigarro.

Ninguém me para na rua, tampouco me vejo interessado em parar por ninguém. A vida é rápida, apesar dos passos confusos. Trombadas muitas vezes não espontâneas. Sequer um pedido de desculpa, ou de licença. Os pombos voam, ou pelo menos tentam, até serem esmagados por algum cavalo metálico selvagem que se faz de cego. Meu olhar desvia, grato por não ser aquele pombo. Suas entranhas e vísceras são os únicos adornos possíveis para aquela rua cinza.

As bocas de lobo permanecem uivando, com seu hálito pútrido, um fio nebuloso de poluição carbônica. Cantam suas lamúrias junto à revolta sonora dos cavalos metálicos, fustigados pelos seus cavaleiros que os incitam a trotar selvagemente por aí. Quando um cavalo cai, a cidade toda canta, numa orquestra destrutiva de instrumentos de sopro, tambores, cacos de vidro e sangue. Mais adornos para aquela rua cinza.

Hoje meu passo continua como ontem. Hoje os cavalos estão mais bravos, trotando violentamente sobre a rua cinza em que passo. As lanças-sentinela prosseguem, com o seu olhar impassível e indiferente à minha existência, mas completamente interessados no pombo aqui ou acolá que adorna a rua cinza. Deixei meu olhar penetrar sobre as pontas dessas lanças, eles são grandiosos vistos de baixo, mas e de cima? O que será que veem? Como será que nos enxergam? Alguns dizem que a democracia cega, mas me pergunto o porquê da democracia dos pombos os fazerem enxergar, principalmente quando os pombos adornam a rua cinza. Teria que me fazer de pombo, para que pudessem me ver? Se pombo fosse, poderiam me ouvir?

Relinchos selvagens explodem, a orquestra retoma as ruas. As lanças-sentinela se dobram sobre a rua, interessadas nela. Se ontem eu desgostava do pombo, agora me torno pombo. Se antes, à margem andava, agora, no centro, me faço visível. Meu corpo, minhas entranhas e vísceras à mostra são um convite para a própria democracia de uma cidade cinza.






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O homem e a peste


Em uma outra tarde fria, encontro-me, novamente, sozinho. A desolação da solidão é precisa: uma mesa, duas cadeiras, uma xícara com café preto, e o silêncio do vazio. Observar os entalhes da cadeira, nunca ocupada, leva-me a entender o trabalho do tempo, sobre aquela superfície material, algo digno de Hefesto. É como se meu olhar fosse capaz de perceber o movimento microbiano do tempo comendo e sulcando aquele pedaço de madeira diante de mim, enquanto minha língua tateia a alquimia da cafeína dissolvida em água quente. Como é belo o tempo passando diante dos olhos que analisam o seu objeto, e como é sublime o efeito que ele causa em nós, similar ao amargo do café, que desperta minha consciência sonolenta.

Posso lembrar de outrora, época em que essa cadeira não estava vazia. Posso permitir recordar-me das conversas, das risadas, dos inícios, meios e fins, da mesma forma que posso recordar dos beijos, das línguas trocando notas cafeínas, entre o líquido adoçado e aquele misturado com leite. Posso, também, lembrar-me das lágrimas, da gota suicidando-se no café em brasa, das palavras murmuradas, do final atravessado na garganta, do não me procure mais, da porta batida com força, do olhar paralisado, não na madeira da cadeira, mas na madeira da porta. Ah, o tempo, tão deídico que consegue fazer um segundo se estender por minutos, só para proporcionar a nós, meros homens modernos, um espaço maior para analisarmos o nada que nos traga, em um maço de seda de culpa e remorso.

Mas de nada me adianta outrora, pois hoje a cadeira está vazia. E não é mais a madeira da porta que me chama atenção, mas sim a madeira da cadeira diante de mim. Intrigante observar como que o tempo faz com que a matéria tome a nossa própria forma. Não sei se por estar drogado, devido ao alto consumo de cafeína, que eleva a minha pressão sanguínea, mas posso vislumbrar na madeira o contorno da forma daquela pessoa, que outrora, a ocupou. Ou teria ela tomado a forma dessa pessoa, somente para gravar ali, o último dia em que ela se sentou? Malditos fragmentos de memória do tempo, esqueçam-me, e permitam-me que eu os esqueça.

Qual roupa você trajava? O que adornava o seu rosto? Seria um sorriso, um lábio retorcido, um traço indistinto? Ah, tempo, bendito sejam os fragmentos de memória esquecidos. Não me permitindo lembrar se o seu olho brilhava, ou se opaco estava. Se seus dedos roçavam os meus, ou se nossas mãos estavam entrelaçadas. Se, telepaticamente, jurávamos amor eterno, típico dos casais românticos, ou se amávamos silenciosamente, cada um concentrado em sua própria análise. Oh, tempo, tão maldito, mas ao mesmo tempo tão benéfico. Fazendo com que eu me perca entre o que é preciso e o que escapa à vista do olho analítico da memória. Estaria eu ficando cego? Ou seria isso fruto do excesso da cafeína?

Maldito tempo que esfria meu café, fazendo com que ele entre em harmonia com meu espírito. Maldito seja o tempo, fazendo-me cada vez mais moderno, fazendo-me cada vez mais sozinho.


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Sobre o autor


Bruno Everton

Tem 26 anos e reside em Curitiba – PR. É mestrando em Estudos Linguísticos na Universidade Tecnológica Federal do Paraná. Já ganhou o Prêmio Poetize da Editora Vivava em 2016, e acompanha o grupo Entreprosas, realizando oficinas de escrita criativa. Organizador do livro Vera-cidade, Fero-cidade, Fuga-cidade: Antologia Entreprosas (Kotter, 2021).

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