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Foto do escritorRevista Trajanos

2 CONTOS DE LUIZ FERNANDO ROSA

Atualizado: 3 de mai. de 2021

o homem cão


passara a tarde inteira farejando comida pelos bancos da XV, vez ou outra lia um livro velho amarelado da Carolina, mas o estômago clamava por alguma coisa, ele era o bicho. não era de raça, mas para alguns tinha, e a sua cor marrom tornava-o, não o único, e sim mais um entre tantos. ora ou outra esmolava aqui, balançava o rabo ali, tudo por alguma coisa para preencher o seu vazio material, precisava comer. ninguém lhe dava atenção, passou a acreditar que fazia parte da paisagem daquela cidade. o prefeito, com medo de que os turistas vissem aquele homem cão que perambulava por aquelas áreas, adotou uma política higienista e levava-o para os lugares mais recônditos da capital. porém, para o desespero do mandatário, ele sempre voltava como um cão ao seu lar, mas não tinha lar, nem dono. sabia que o ar era pesado e sujo no centro da cidade modelo, mas lá era sua casa e, em casa, sempre tem algo para comer. além disso, tinha outra questão que fazia com que ele voltasse correndo, na periferia chovia prata com mais frequência que no centro e, vez ou outra, alguém amanhecia com o corpo cravejado. no centro, era impressionante como as pessoas não o enxergavam, ou fingiam não enxergá-lo. por que ninguém se importava? por que ninguém se importa? rosnava. mal sabia ele que todos estavam presos em cavernas tecnológicas platônicas, cegos tentando admirar os abismos líquidos de seus mundos tecnológicos. levantou-se, farejou algo no ar, foi até o Senadinho, abanou o rabo, sentou, disse que tinha fome, ninguém ligou. no finzinho da tarde foi à Boca Maldita, lá encontraria algo, algum resto de algum restaurante ou de alguém. caminhou lentamente em passos curtos, atento aos cheiros no ar, livrou-se do livro e das dúvidas, pensou em roubar, mas era cagão demais para atos tão drásticos, os deuses hão de me ajudar.

sentou-se em um banco próximo a uma mulher bem vestida, ela estava no cio, porém, a aparência e o ar de fome do homem cão, afastou-a rapidamente. entre um pensamento e outro, um lapso temporal, já era tarde da noite e ele precisava se abrigar. a noite, como um breu, era acompanhada de uma garoa fina e fria, o ar da cidade mudara. caminhou pela XV como se fosse a última vez, algo em seu estômago dizia isso. desceu a Riachuelo e lá encontrou um lugar seco para se abrigar. a fome gritava de seu estômago, interessante,pensava ele, conheci a fome antes de conhecer a Carolina. ficou matutando o porquê das pessoas não se importarem, eu não sou como eles? o que me difere além da fome que sinto? o ar era límpido, e de repente a chuva começou a cair, uma chuva fina, linda e mortífera. e talvez fosse toda essa beleza que estivesse fazendo com que seus olhos se sentissem tão cansados. dormiu. esquentou, apesar da noite fria. incandescia. queimava. transcendia a mera existência. tornava-se estrela. libertou-se.



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A montanha quebrada


Ulisses não era pai e nem filho, e no alto de seus 72 anos, possuía um espírito quebrantado pelas desilusões e mazelas da vida. Sua cidade não o via, era apenas um homem-número que poderia entrar ou não nas estatísticas do sistema. A pele negra pintava as ruas da montanha quebrada em que vivia e ele próprio tinha a cor daqueles sem ancestrais. Nela, os jovens eram uma espécie de Aquiles reverso pois, diferentemente dos peles alvas, eles eram a pele-alvo, e seus calcanhares eram imunes a canetas, torções e tudo o mais. Dei sorte, era o que pensava, estava tão à margem quanto aqueles números ambulantes.

Certa manhã qualquer, quando os dias eram todos iguais, descia a sua montanha para trabalhar. Mesmo com a reclusão do mundo em uma quarentena forçada, Ulisses tinha que ir para a lida, lidar com a tristeza e com a ganância dos chefes e dos patrões. Era pedreiro, e no alto de sua acrópole de arranha-céu tinha uma força sobre-humana. O dia se desenrolava como era de se esperar, faz isso, faz aquilo, pega isso, enche essa laje, e recebia o mínimo para seu sustento, embora fossem 12 trabalhos diários. Pelo menos era leve, mas de natureza insustentável. No final do expediente, partia para a sua odisseia cotidiana atravessando a cidade de pedra, em ônibus lotados com “pôres” do sol enferrujados. Quando chegava em sua montanha, Ulisses sabia que ninguém o esperava em casa.

Naquela data sem data, Ulisses teve um mal pressentimento. Alguma coisa atravessara sua espinha como um beijo fulcral de morte e sabia que aquilo não era normal. Pegou um terço que carregava consigo, e enquanto rezava para o deus dado a ele, rezava ao mesmo tempo para o deus dele. Quero apenas chegar em casa, por favor! E subia sua ruína como Sísifo, por que fui amaldiçoado a esse lugar de almas abandonadas? Por que tenho esse medo dentro do meu peito? Por que um semi-deus teme os homens? Não sabia as respostas, só sabia que queria viver. Se nada acontecer, eu vou embora, vou morar no mato, eu vou para a puta que pariu, mas eu não subo para este inferno novamente, eu só preciso chegar em casa.

Homens de violência autorizada observavam Ulisses, foda-se, ele é velho, ouviu um deles falando, apertou o passo. Destrancou a porta com as mãos trêmulas, entrou rapidamente, tirou os sapatos, jogou todas as roupas em cima da cama e se escondeu embaixo dela. Dava risada quando começou a garoar, primeiro as luzes se apagaram, mas a TV permaneceu ligada. Um estrondo e uma chuva de prata caiu sobre a sua casa, chão de estrelas caídas. E, no fim, ele ouviu as cantorias, não sabia o que era, mas era belo e quente, o fim. Adeus cidade de Ulisses, adeus Ulisses, adeus.

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Sobre o autor



Luiz Fernando Rosa

Comunista nascido e criado nas periferias de Curitiba, finalizando o curso de Letras Português na Universidade Tecnológica Federal do Paraná. Redator do projeto #possofazerdiferente e do portal Kotter Notícias. Editor da Kotter Brasil e militante do PSOL Curitiba.

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