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A GRAVAÇÃO, UM CONTO DE ANDREZA MODESTO


A gravação


Lembro que você viu os meus planos e me disse: “você vai longe”. E me viu indo. Jamais saberei o que você sentiu ao se despedir de mim antes de me ver partir. Parece que a dor quando não chega, ela manda recado. Aprendi com você. Não, não sobre a dor, mas a angústia de não conseguir ser feliz a nossa maneira. Eu remexi os meus cadernos, tem muita escrita triste. Como eu deixei tudo isso tomar conta de mim, para chegar tão quebrado até você?

Améllia, você sabe a dor de amor que parte pelos dois lados: o coração e o mundo. Esperei você me dar um puxão de orelha, mas você não apareceu. E logo disse: você já é adulto. Onde? Eu nem aprendi direito a ser criança. Disse para eu abrir o meu coração com os meus amores. Desfiz tantos, que abri tarde. Eu costumava brincar no bosque, com uma mania infantil de ser apanhador de flores. Fazia um baldinho em minha blusa folgada, para aparar as flores que caíam das árvores. Ah, Amélia, sou mais amor do que você imagina. Só não sei como essa dor embrulha o meu estômago e me deixa com um mal-estar danado. Quiçá, seja por isso que vivo andando em médico, falando dos meus sintomas, tomando uns medicamentos para a tristeza que não passa. É uma dor aqui, acolá, outra vez deu até um caso de emergência.

Olha, Amélia... ainda estou aprendendo a amar. Leio Drummond para aprender. Ele me disse que amar se aprende amando. Mas veja só se pode um negócio desse. Me colocar na aula prática. É a parte mais difícil quando saímos da faculdade. Eu preciso aprender a amar. Vejo tantas razões em Drummond. Observe que eu ainda nem o li inteiro.

É outro ano, Amélia. Não desista de me escutar não. Só por isso eu sobrevivo, porque sei que não falo sozinho, apesar de estar cansado. Queria saber como as almas felizes não se cansam. Olho pra cama e só penso em dormir. Estou terminando de beber uma taça de vinho, com toda metonímia que possa existir. A tristeza me deixa exaurido, preciso mesmo é me cansar de tanto ser feliz. É isto.


(Depois de ouvir o final da gravação de recados no telefone, Amélia o desligou, tirando a meia do outro lado do pé. E deitou-se no sofá à espera de mais um fim de silêncio).




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SOBRE A AUTORA



Andreza Modesto


Letras, literatura e psicanálise. Professora e também aprendiz de escritora. Desde 1994 com o corpo e a alma carregada de afluências que me inspiram: arte, linguagem, literatura, filmes, livros, músicas, pessoas e discursos amorosos. Quando eu não falo em silêncio, exponho em palavras. Desde muito cedo já imaginava: se não fossem os caminhos das Letras, não saberia por quais caminhos poderia seguir. Graduada em Letras – Habilitação em Língua Portuguesa pela Universidade Federal do Pará. Pós-graduanda em Língua Portuguesa e Literatura. Mestranda em Estudos de Linguagens pela Universidade Tecnológica Federal do Paraná.

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