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A vida invisível: um grito à visibilidade feminina


Por Renata C. L. Miccelli



“Sabe aquela brincadeira de rabo de burro?”

[...]

“A vida é como essa brincadeira [...]. Às vezes a gente acha que está fazendo tudo certo, mas quando se dá conta descobre que estava com os olhos tapados e não consegue acertar de jeito nenhum”




Quem nunca leu um romance que marcou sua vida? Aquele com um personagem, uma história que mexeu com sua estrutura, com o seu ser. Bom, eu já.

A vida invisível de Eurídice Gusmão, de Martha Batalha (Companhia das Letras, 2016), certamente se encaixa nessa vaga de “livro favorito da estante”.

Não só por sua linguagem inteligente, prosa despojada, com aquela pitada de humor, ou por trazer cenários e vivências reais na construção das personagens. Mas também por construir seres capazes de representar e impactar gerações.

Personagens marcantes, únicas e, ao mesmo tempo, tão parecidas com... nós. Comigo, com minha mãe, minha avó, com minha amiga, minha irmã. Com você.

A vizinha fofoqueira; a solteirona que “se arrependeu de ter escolhido demais num tempo em que as mulheres escolhiam de menos”; a mãe solteira que se diz viúva para arranjar um emprego; a prostituta “mais requisitada do Estácio” que se tornou a babá “mais requisitada do Estácio”, e por aí vai.

Personagens que, em um Rio de Janeiro dos anos 40 aos 60, por mais que guardassem sonhos no peito, almejando uma realidade diferente, não tiveram espaço para, livremente, viver tudo aquilo que gostariam de viver.



“Mas não sabia que queria tanto”.



Por exemplo, Eurídice. “Se Eurídice queria casar? Talvez [...] O que Eurídice realmente queria era viajar o mundo tocando sua flauta. Queria fazer faculdade de engenharia [...]. Queria transformar a quitanda dos pais num armazém [...], o armazém [...] numa empresa [...], e a empresa num conglomerado”.


Mas não sabia que queria tanto”.


Ou Guida, “a mulher que nunca olhou para baixo, que não sabia o que era fracasso”, em meio a tropeços no caminho, “[...] desde que lhe retornassem com um canto para morar, um pouco para comer e a saúde do seu Chico podiam tratá-la como pecinha, que ela não ligava”, mas “alimentava suas forças com as dificuldades de seu caminho”.



“A saída delas era exatamente esta: sobreviver.”



Sobrevivia.


E era isso. A saída delas era exatamente esta: sobreviver.

Sobreviver a um casamento monótono, sem amor. Sobreviver ao ser rejeitada pelo pai, abandonada pelo grande e breve amor de sua vida, com um filho no colo. Sobreviver ao assédio, pois o remédio do filho não podia faltar.

Sobreviver pensando que “precisava conseguir trabalho antes que a barriga ficasse aparente. Quando o empregador descobrisse a gravidez [...] não teria coragem de demiti-la”. Que, “depois do parto ela encontraria alguém para ajudar com o bebê e voltaria a trabalhar”.



“ao deixarem de ser um pouco elas para serem ‘a pecinha de uma engrenagem’ quem nem sabiam ‘para que servia’, só que ‘funcionava’, a saída era sobreviver a cada dia, ‘meio songa, meio monga, meio morta’. Silenciada.”



Em meio ao aperto no peito, ao deixarem de ser um pouco elas para serem “a pecinha de uma engrenagem” quem nem sabiam “para que servia”, só que “funcionava”, a saída era sobreviver a cada dia, “meio songa, meio monga, meio morta”. Silenciada.

O caminho era se recompor, encontrando apoio em meio à sororidade, aos livros, à culinária, à costura. Era encontrar forças de um jeito ou de outro. Era – e ainda continua sendo – levantar a cabeça para mais um dia de luta.

Martha Batalha, brilhantemente, acertou em sua primeira escrita. A vida invisível conta a história não só da invisibilidade de Eurídice, mas também de Guida, Filomena, Zilda, Das Dores, Renata, Maria, Mariana, Carolina, Manuela, Sabrina, e muitas outras.

Uma escrita leve, prazerosa, temporal – ao datar os acontecimentos, delimitando um espaço de tempo – e, ao mesmo tempo, atemporal – no sentido de marcar gerações, pois conseguimos, ainda hoje, captar os sentimentos das personagens retratadas –, o romance, narrado em terceira pessoa, prende o leitor da primeira à última página.

Emociona, comove, faz refletir, rir, suspirar ora de tensão, ora de angústia, ora de alívio.

De certa forma, ao ler, perceberá que há, em você, um pouco de Eurídice, um pouco de Guida e, com certeza, um pouco de mais alguma personagem que aparece no meio de tanta história para contar.

Há um pouco delas em mim também.

Talvez, o pouco que elas perderam de si está em nós, e o pouco que nós perdemos de nós mesmas esteja, nessas e nas próximas gerações, espalhado por aí.

De qualquer forma, de certa forma, certamente, com toda a certeza, estamos todas ligadas. Pela história da invisibilidade? Talvez. Mas esta ainda está sendo contada pelas mulheres que poderiam ter sido, foram e, um dia, serão vistas, ouvidas e lembradas.



LIVRO



A vida invisível de Eurídice Gusmão, Martha Batalha. Companhia das Letras, 2016. 192p.

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