Perfil
Bruno Everton tem 26 anos e reside em Curitiba/PR. É mestrando em Estudos Linguísticos na UTFPR. Já ganhou o Prêmio Poetize da Editora Vivava em 2016, e acompanha o grupo Entreprosas, realizando oficinas de Escrita Criativa. Organizador do livro "Vera-cidade, Fero-cidade, Fuga-cidade: Antologia Entreprosas" (Kotter, 2021). É resenhista mensal da Revista Trajanos.
Na sequência, seus contos “Carta ao síndico” e “O espetáculo”, publicados originalmente na página do autor no Médium.
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Carta ao síndico
Prezado, Sr. José,
Gostaria de começar esta carta com um pedido de desculpas pela bagunça que deixo o apartamento um quatro nove da ala direita. Eu sei, eu sei, por conta dela terei que arcar com uma multa, afinal são as regras do condomínio, nada de bagunça. Entretanto, peço que compreenda que a bagunça que deixei não foi, ao todo, intencional. Foi uma consequência. Afinal, creio eu, o senhor sabe o quanto prezo por uma vida organizada, regrada e sem dívidas. O senhor inclusive sabia de todos os meus horários: acordava às cinco, saía pra trabalhar às seis, pois o ônibus passava às seis e quinze, pontualmente. Ao retornar sempre encontrava o senhor com a tribuna do dia, por volta das sete, quando me recebia com um boa noite abafado pelas folhas do jornal. Obrigado por sempre ter me desejado uma boa noite, por mais que seu desejo fosse artificial e protocolar quando estava na recepção.
De toda forma, devo te dizer, nunca eram boas as minhas noites neste apartamento. E a cada noite que se passava, piores ficavam, pior eu ficava. Sempre sentado nesta poltrona reclinável que o senhor me vê neste momento (ou me viu, não sei em que momento estará lendo esta carta), ao lado de toda bagunça que, novamente, peço desculpas por ela. Não é engraçado? Chega uma hora que de tanto nos bagunçarmos por dentro, chega o momento de colocar tudo isso pra fora. Mas esquecemos que, ao fazermos isso, alguém vai ter que limpar, e nem sempre será a gente. Por isso, novamente, desculpa por ter que limpar a minha bagunça.
Esta carta não é um documento acusatório, tampouco procuro redenção com ela. É só uma carta, um passatempo. Somente enderecei esta carta ao senhor, pois saberia que seria o primeiro e o único a me procurar. Afinal, chegaria uma hora que o aluguel faria falta para o senhor, e isso o traria até mim. Não seria a minha falta, nem meu olhar cabisbaixo ao passar pelo senhor pelo corredor, tampouco o cheiro do apartamento que invadiria o corredor e desceria ao saguão que o traria a mim, mas sim o dinheiro que faltaria no seu caixa no final do mês. Não reclamariam da água infiltrada da água que escorre da pia da cozinha, não reclamariam do barulho de algo caindo às três e cinquenta e quatro da madrugada, não reclamariam da bagunça. Nada disso. Eu sei que você só viria até aqui, bater na minha porta, saber o que aconteceu, quando lhe faltar setecentos e oitenta e sete reais no final do mês. Mas não se preocupe, este mês não te faltará. Caso tenha lido até aqui, saberá que deixei um envelope com essa quantia sob a almofada que está logo atrás de mim. Espero que meus últimos segundos como inquilino bagunceiro não apaguem todos os cinco anos e meio que fui um inquilino silencioso e recatado.
Porquê? Todos perguntam os motivos, mas são cego às causas. Não importa quem atirou os baldes no fundo do poço, são as pequenas gotas que fazem ele encher mais depressa. Anos e anos com uma chuva de canivete sobre meu poço e de repente, ele estava cheio, praticamente transbordando. Então chegou a hora de eu me esvaziar. E como se esvazia um poço? Bem, tem que tirar o que está dentro dele. E foi o que fiz. Meu amigo João falou de uma faca só lâmina, sendo essa a psicologia da composição de um ato deixado registrado em uma folha em branco. Então, permita-me por isso em versos:
Se minha pele fosse fria
e minha tessitura fosse firme
não sentiria a lâmina
cortar-me profundamente
enquanto me desvencilha
desfazendo o texto
da minha vida
em pequenas linhas
De lâmina fria
basta meus dedos
descompassados
perdem o pulso
até pararem eretos
sobre o braço
de madeira
que pulsa
Não sou homem
nem chumbo
nem bala
Sou a faca fria
que repousa
no chão bagunçado
diante do suspiro
o último, talvez,
que costuro
com a faca fria
sobre a minha pele
desfazendo-se em texto
em versos
em silêncio.
Espero que goste de poesia. Não necessariamente da que acabo de escrever. Minha cabeça não estava muito boa para os versos, mas de poesia no geral. Apesar de me parecer que o senhor só gosta de ler tragédias em sua tribuna diária. Então isso me faz pensar que, talvez, não se importe tanto com a bagunça, talvez até goste dela.
Saiba que escrevo às uma e dezessete, e pretendo terminar esta carta até às duas. Talvez você não saiba da minha pontualidade para fazer as coisas. E esta carta antecede a tudo.
Lembre-se de mim: do inquilino do apartamento um quatro nove ala direita. Lembre-se de mim, nem que seja por alguns instantes, nem que seja durante os momentos que esteja limpando a minha bagunça. Lembre-se de mim e do envelope sob a almofada. Principalmente, lembre-se de mim, quando ouviu um barulho de madrugada e ignorou. Lembre-se disso, por favor.
Meu tempo agora é curto, eu preciso ensaiar o resto. Minhas noites de insônia me tornaram um ansioso impulsivo. Sem remédio, abraço ou placebo, eu me vejo incurável. Mas não nos esqueçamos, o meu poço está cheio e é preciso esvaziá-lo. Então, atacarei a sua estrutura, abrindo fendas para que a água escoe. Talvez não seja o mais racional ou o mais lógico a ser feito, mas é o que eu posso fazer no momento. Cansei-me de esvaziá-lo com um balde, afinal a chuva sempre volta e, com ela, o poço enche tudo de novo.
Então perdoa-me, mais uma vez, pela bagunça e lembre-se de mim.
Inquilino um quatro nove ala direita.
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O Espetáculo
[Simule uma caminhada lenta sobre o palco, cabeça erguida, olhos firmes e atentos, fixados em um ponto inexistente na última fila da plateia] O que há nessa rua vazia, além do asfalto quente sob os meus pés, que denunciam a meu estado de vida? O que há logo adiante, senão uma placa indicando o rumo ao paraíso, que ao mesmo tempo é tão distante? [Interrompa a simulação] Porque os semáforos estão todos fechados? Porque estou eu caminhando sobre este asfalto? O que faço, de mim mesma, senão for caminhar sem rumo? [Olhe ao redor, simulando estar procurando uma direção qualquer] O que faço, para mim, em mudar essa situação confusa? Qual rua tomo? Qual esquina me prostituo? Qual roupa visto para que possam desejar-me, sem notar a minha bunda flácida, minha maquiagem borrada e meu dente que falta? [Surta, gritando, enquanto tira tufos da sua peruca] O que faz de mim uma prostituta? A rua que ando? A perdição do meu corpo? Do meu sexo? A minha boca suja? Vá pra puta que te pariu, seu filho de uma puta! [Desça do palco, pegue o corredor entre as filas da plateia]
[Permaneça em silêncio, olhando para a plateia próxima, enquanto coça a sua nádega direita] Ô, seu broxa! [Olhe para algum homem próximo que esteja sentado próximo a uma mulher] Você mesmo, seu pinto pequeno! Agora você finge estar com vergonha né? Mas na noite passada não foi assim não. Ô moça, sai de perto dessa cara aí! Ele vai te encher de mentiras. [Aproxime-se dos dois] Isso mesmo, seu pinto murcho do caralho! Você mentiu para mim! Você falou que ia me dar uma noite dos sonhos, e você só me deu uma gotinha ou duas, seu filho duma lazarenta! Olha para mim, estou aqui na danação, por conta de um broxa como tu, seu desgraçado. [Aponte o dedo para o homem] Ah, é homem de bem, né? Conheço vários tipos como tu, fala que representa o bem e os bons costumes, mas quando o relógio bate às três da matina, está procurando a primeira raba peluda para se enfiar. Não é mesmo, polenguinho? E pensar que fui enganada por tu. De grande, você só tem o carro, e o adesivo grudado na traseira escrito Brasil acima de tudo, Deus acima de todos. Uma pena, que o Deus lá de cima está vendo você deixando sua mulher na cama fria, enquanto procura o calor de um macho de saia, não foi assim que você me chamou para os seus amigos, seu palerma do cacete? [Jogue a bolsa no homem].
[Projete a sua voz para toda a plateia, enquanto aponta para o homem] Estão vendo esse filho da puta aqui, gente!? Ele é o responsável por eu estar assim. [Exponha a parte de cima do seu corpo] De manhã, esse homem de bem me caça, me bate, fala que eu sou uma mulherzinha que mereço apanhar para aprender a ser macho. Mas de noite [Ria histericamente], de noite esse filho da puta me chama de mulher, pergunta se eu gosto, e fala que só a minha bunda satisfaz o pau dele. [Olhe fixadamente para o homem] Pelo menos era assim até ontem, não é mesmo? Até você chegar bêbado, chorando, falando que queria me ver de novo, não contente por ter me dado uma surra de corrente de moto, junto com os seus amiguinhos, sabe quantos dias eu demorei para sair da cama? Sabe quantos dias eu passei sem poder ganhar meus trocados na rua por sua culpa seu desgraçado de merda? [Comece a chorar, soluce se for necessário] Eu estou com fome, merda! E isso é culpa sua, seu bosta! Foram três dias de cama, depois quatro dias mal consigo me mexer, depois mais dois dias com dores nas costas, nas pernas e na nuca. E agora me responda seu filho da puta, como que eu ganho meu dinheiro com a minha fábrica toda fodida?
Ei, moça! [Olha para a moça novamente] Cai fora daí mulher, ele vai falar que te ama, que você é o amor da vida dele, mas vai chegar de madrugada e vai te trocar por uma travesti. E sabe porquê? Porque você não dá seu cu pra ele, e ele gosta de um cu, mas ele gosta de comer um cu escondido, então ele encontra isso ali ó, na Paulista, foi lá onde ele encontrou o meu, e ele gostou viu. [Ria debochadamente] Comeu, repetiu e sempre que pode, está comendo de novo. E sabe mais? Ele gosta que eu grite, e se eu pedir pra parar, ele vai mais forte, porque ele gosta que eu sofra, mas eu tenho que sofrer gritando, porque o prazer dele não está no meu corpo, mas na minha dor, no meu sofrimento. [Arranque a peruca] Saia logo daí, mulher! [Jogue a peruca na mulher] Ou você é surda cacete? Saia daí, deixa esse filha da puta pra lá, vai procurar outra pessoa, ou vá ser feliz sozinha, você se basta monamour.
É engraçado como as pessoas não escutam a gente, né? [Comece a andar, lentamente, de volta para o palco, não mantenha contato visual algum com a plateia] A gente tá lá, ganhando nosso pão, vendendo o nosso corpo, e vocês só passam. Se estão com a família, apontam e falam, olha lá Gabrielzinho, olha que feio aquela aberração que vai contra tudo aquilo que nosso [falar as três próximas palavras pausadamente, ressaltando-as] Senhor Jesus Cristo diz na Bíblia. [Vire agressivamente para a plateia] Pois é, Ga-bri-el-zi-nho, sou uma aberração, mas só quando seu papai está com a sua mamãe. Porque quando seu papai está sozinho, eu sou a própria maçã que ele quer comer, e se deixar, come junto até as sementes. [Ria] Está vendo, Gabrielzinho!? Quem é a aberração? Aquela que existe nas ruas, pobre, abandonada, valendo-se do seu próprio corpo para sobreviver, ou aquela que desce da sua Chrysler preta, com vidro fumê, e quando pergunta o valor do programa, e eu falo que é trinta o boquete, setenta o cu, e sem camisinha é o dobro, a pessoa reclama e fala que eu estou cobrando um valor alto demais. [Gargalhe] Pois é, Gabrielzinho, essa pessoa é o seu paizinho. Paga de homem de família, mas gosta tanto, que tem uma a cada esquina, só que claro, uma é a família propaganda de margarina, as outras, são as que ele toca o foda-se, e para essas, o discurso do bandido bom é bandido morto é o que canta. Pois eu te falo, Gabrielzinho, seu pai é um puta bandido, só que diferente dos meus, ele não morre, porque homem de blusa branca e gravata preta, paga para outra pessoa ser seu próprio defunto.
[Suba ao palco e se dirija ao centro dele] Sabem porque eu falo tudo isso, sua cambada de filho da puta? [Olhe para todos] Vocês pouco se importam com o que uma mulher morta tem pra dizer. Ah, nossa [Deboche], vão se fingir de surpresos agora, queridinhas? Vão cheirar um cu, seus putos. Porque a gente só serve como estatística, ou pra algum bosta almofadinha escrever literatura. Eu quero mais é que vocês vão se foder, e tomar bem no meio do olho do cu!
[Apagam-se as luzes, um único holofote na travesti] Eu sou Jacira Jussara de Campos Almeida, nascida sob o nome de João Rodrigues de Pinto Jesus, a qual recuso pois esse nome não me identifica. Nascida e crescida nas favelas de Itapema, descoberta, amada e consumida nos corredores iluminados e sagrados da nossa senhora Avenida Paulista. As marcas deste corpo morto que vos fala, [Fazer voz irônica] ai que chique usar a linguagem do Temer, não é meu bem? São as marcas dos crimes cometidos diariamente a mim e às minhas irmãs da rua. Nossos corpos são produtos para os homens de bem que vendem a fala da moral, mas na cama são os profanos, e quando não, o próprio anti-cristo. Aos vinte e quatro anos fui assassinada por um grupo de sete homens. Golpeada por trás. Amarrada. Despida. Estuprada. Não só uma, mas sete vezes. E não só por um, mas, até onde eu me lembre, até três deles, ao mesmo tempo. Apanhei. Sangrei. Chorei. Perguntei o que fizera para sofrer aquilo? Porque abraçar a minha identidade era algo tão sofrido? Respondam pra mim, seus arrombados. [Apagam-se as luzes]
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