top of page
  • Foto do escritorRevista Trajanos

Com a palavra, João Simino


Perfil


João Simino é nascido e residente em Curitiba/PR. Finalista do Prêmio Off Flip 2020 (poesia). Também em 2020 recebeu os prêmios Outras Palavras (romance) e de Licenciamento de Obras Digitais (contos), da SECC-PR. Estreou na poesia com o livro Entre a palma e crânio (Kotter, 2019). Organizador do livro Vera-cidade, Fero-cidade, Fuga-cidade: Antologia Entreprosas (Kotter, 2021). Idealizador e curador do grupo de escrita criativa Entreprosas e editor da Revista Trajanos.


Na sequência, “O piano e a borboleta”, conto inédito de Coroas e Malmequeres, seu livro mais recente ainda não publicado.






---



O piano e a borboleta


Ela respondeu que queria ficar na varanda, com os outros, para ver o que ia acontecer

(Rubem Fonseca)



Ato I



Naquele dia, nada aconteceu.

Nenhuma porta se abriu; da garagem, nenhum motor foi ligado; da rua, nenhum carteiro foi visto. Alguns pombos no parque, apenas. Balanços vazios, escorregadores vazios. Só o farfalhar do pinheiro, uma cortina batendo...


Quantas pontes pode ter uma janela? Quantos passos mede uma solidão?


Se disser: Decerto que as trevas me encobrirão; então a noite será luz à roda de mim.

Nem ainda as trevas me encobrem de ti; mas a noite resplandece como o dia; as trevas e a luz são para ti a mesma coisa;


“Vó, desliga esse rádio”. Meio a contragosto, Neiva desliga o salmo, entretanto continua a reza, calada, terço entre as mãos, joelho inchado, coluna arcada. Uma nesga de luz atravessou a janela do quarto, era fim de tarde.

Levantou-se a certo custo, passou um café, sentou-se diante da janela. O prédio estava tomado de vazio; vazio diferente; uma solidão dividida.

Da janela, a conversa dos vizinhos do andar de baixo, Francisco e Bethânia.

“Tome este comprimido, sim? Ajuda na febre”, diz Bethânia, “este aqui é pra dor, na bula diz que é de doze em doze horas”, “isso mesmo, tome tudo”.

A voz de Francisco mal se ouviu, era uma sugestão, um cochicho, “quero que passe”.

Neiva rezou novamente, olhando para o lusco-fusco embargado do céu, alcançou um gole da xícara: café fraco demais, “pudera, gastar tanto café em um dia?”. Acabou o pão, mastigou uma bolacha – ela, que nunca foi de comer à noite. Diferente de sua neta, Ana Clara, que estava passando os dias com ela desde que tudo começou. Neiva preocupava-se também com sua filha, Helissa. Helissa estava longe, era médica, você sabe. Mesmo assim, justificativas não abalam sentimentos.

Quantos passos mede uma solidão?

Um telefone tocou em algum lugar da vizinhança. Ouviu-se. “Sim, mãe, fui dispensada, disseram que não poderiam me manter neste meio tempo, é, são tempos difíceis, sim, agora estou aqui sem bem saber o que fazer, mas estou bem, minha nenê também está, ficaremos bem”. Neiva fechou por definitivo a cortina, justo à hora que a rua perdeu o silêncio; as luzes de uma ambulância acenderam aquelas paredes vazias de cor.

Caso fosse contaminado, não precisaria me preocupar, nada sentiria ou seria, quando muito, acometido de uma...


Desligou a televisão e tomou seu banho, sem pressa. Lembrou-se de que no dia seguinte eles ficariam sem água – o tal do rodízio entre bairros, a tal da economia.

Poderia escutar a própria respiração, vagarosa. Respirava fundo, um... dois... três... quatro segundos, acalmava-se. Hoje nada aconteceu.


Enquanto secava os cabelos, ouvia do corredor:

“Está muito errado tudo isso, e se eu precisar sair? Ficarei aqui? Chuveiro estraga, dá vontade de comprar lanche, sei lá... temos nosso direito de ir e vir... não está certo, se eu quiser sair, eu saio e pronto, viu que tem tantos negócios fechando por causa disso, viu que é só idoso que morre, mas você sabe, já é idoso”.


*


Neiva se assustou com um vulto – era só uma borboleta, aproveitando-se da janela aberta. “Vista ruim dá nessas coisas, a gente vê uma borboleta, pensa que é outro bicho, uma barata, um morcego”, riu-se. Era uma borboleta negra de asas longas, tão escura quanto a noite que chegava. Sem mais o que fazer, Neiva comeu um brigadeiro, de ansiedade mesmo. Tinha fortes crises de ansiedade, ainda mais nestes tempos solitários.

O brigadeiro? Foi do aniversário do pequeno Heitor, seis aninhos, a família dele fez uma festa pequena, mas sem deixar os velhos costumes de lado: prepararam um bolo, enrolaram brigadeiros, assaram uma pizza – porque não havia salgados –, fizeram um suco – porque já não havia refrigerante. É, hoje é tudo improviso. Chamaram Ana Clara por telefone mesmo, mas Neiva não permitiu. A garota ficou chateada, é claro, fazer o quê.

Heitor fez questão de ajuntar uma porção de doces, pegou o elevador, deixou lá, ao pé da porta, para Ana Clara (ou Clarinha, como ele a chamava). O pequeno ainda esqueceu de apertar a campainha, mas Clarinha já sabia.


Neiva alcançou mais um brigadeiro. Pura ansiedade. Lá do outro lado, um casal se exercitava na sacada; exercício de rotina, sempre às oito da noite, era um dos poucos sinais de saúde daqueles prédios. Nesse horário, a rotina de Neiva era receber as ligações de Helissa, que contava sobre seu dia, perguntava sobre sua filha, essas coisas. No entanto, eu te disse que naquele dia nada aconteceu.



Ato II



Neiva passou a madrugada em claro, entre um suspiro e outro. Dali de seu quarto, escutava-se vindo de baixo o velho Francisco, que não conseguia segurar sua tosse. Lembrou-se ela de seu esposo, Geraldo; não que o houvesse esquecido: lembrava-se de tempos difíceis vividos dentro daquele quarto. Foi questão de tempo, e o tempo chegou como uma neblina.

O tempo correu. Será que lembraram de dar todos os remédios ao Geraldo? Cuidam bem dele? Sentia-se estranha, trinta e cinco anos de casados e ela não podia nem o acompanhar neste momento.

Bem, aos cuidados de Deus e de Helissa.


Foi rápido. “Precisamos ir ao mercado”, ele disse, “pois vamos enquanto dá”. “Da não, Geraldo”. Os corredores lotados, no jornal ressaltavam: necessário manter a calma, comprar apenas o que for preciso. Quem escuta? Batiam os ombros, alguns se apressavam com os produtos entre os braços, imagine, Neiva contou doze pacotes de pão em um dos carrinhos. Perto do leite, a placa: limitado a duas unidades por pessoa. Certas prateleiras já estavam vazias. Mesmo com a correria, ainda via uma ou outra pessoa de máscara ou luvas. Geraldo achava ridículo. Via o suor no rosto dos garotos que trabalhavam no supermercado, buscando organizar os produtos, limpar os carrinhos. Adianta? O caixa estava maluquinho, falava sozinho, coisa com coisa. Parece sabe o quê? “Parece guerra”, Geraldo disse. Antevia, é certo. Guerra chega assim, sem aviso prévio.

Nem quatro dias depois, estava ele de cama. Deu uma semana, foi para o pronto-socorro. Aquela coisa, você sabe, falta de ar, afogava-se, uma tristeza.


*


Com o sol, um novo dia. Ana Clara acordou cedo, estava lá, brincando. Neiva passou as mãos na cabeça da neta, respirou fundo, passou o café e sentou-se diante da janela. O prédio estava tomado de vazio, exceto por aqueles garotos jogando futebol na quadra. No jornal, as praias lotadas. Enquanto isso na Itália e na Espanha, já morriam tantos, passava no jornal. “Quero lá saber de Espanha e Itália”, Neiva teria pensado uma semana antes. Agora era diferente, pelo menos para ela.

Dez da manhã, tiquetaqueava na parede. Relógio presente de seu genro, “Deus o tenha”. A bola estourava na parede da quadra. Uma. Duas. Três vezes. Tiquetaqueava. Um tique-taque doloroso, a cada bolada na parede. “Vó”, “vó, quando minha mãe vem?”.


*


Helissa na verdade não era clínica geral, estava lá para ajudar. “Temos um caminho longo pela frente”, ela escutou. No início, todos sabiam de qual caminho se tratava. Prefere-se acreditar e seguir em frente. Em poucas semanas, alguns colegas certamente seriam afastados. Era uma possibilidade.

São dois respiradores, seis unidades de tratamento intensivo. Na primeira semana, foram três pessoas; na seguinte, sete; agora, quinze pessoas precisando de internação, uma da primeira semana morreu, as outras acumulavam-se.

Três ou quatro horas por dia, era isso que Helissa dormia. E já se sentia desanimada. Ontem mesmo, antes de dormir, permitiu-se chorar um choro diferente, um choro estranho. Diante dos leitos, o que via era sua filha, sua mãe. Seu pai.

Geraldo foi internado naquele mesmo hospital, mas Helissa tinha pouco tempo para os acompanhamentos dele, apenas o necessário.


A vida é mesmo uma bagunça. Cabe ao ser humano desatar os nós desse novelo.


Máscara? Improvisada. Ainda havia luvas, poucos EPIs, alguns escassos medicamentos. “Já pedi para comprarem mais deste”, teria ela pensado se tivesse tido tempo. A luz acabou. “Doutora, estamos verificando os geradores, pode levar um tempo, eles teimam, você sabe”, foi ao fim dessas palavras que a luz voltou, aos curtos respiros.

Helissa lavou as mãos, retirou os EPIs, esquentou a marmita. “É um privilégio estarmos ainda respirando”, teria ela pensado. Olhou a janela, chovia.



Ato III



São reais estes tempos? Quantas pontes uma janela pode ter nestes tempos?

O relógio marcava oito e meia da noite, ônibus lotado, janelas fechadas. Alguém pisou em seu pé, “logo no tênis novo”, pensou Helissa. Janelas fechadas, abafadas. O suor, o perfume passado de dia inteiro, a roupa suja, a tosse. Tossiam alguns aqui e acolá. A chuva engrossando, já não se via pela janela a rua vazia, as praças vazias; agora a janela seria um acolhedor de pontes entre as pessoas. Pessoas ajuntadas.

Oficialmente, nem todas as empresas liberaram seus funcionários. “Só manter os cuidados”, “oferecemos máscaras”, “é dever do funcionário prezar por sua saúde”. Muitos, é certo, preferiram rejeitar o isolamento, porém com o tempo esses se tornaram minoria. Algumas instituições, como a federação do comércio, uma rede de restaurantes e uma rede do setor varejista consideraram um absurdo paralisar, inclusive o dono de um deles afirmou: o país não pode parar por causa de 5 ou 7 mil mortes, até que chegou por decreto: recolham-se.

Ligação do hospital.


*


Neiva tentou acender a luz do quarto, a lâmpada estava queimada. Colocou com cuidado o salmo no radinho, volume baixinho, encostou no ouvido,

...as trevas e a luz são para ti a mesma coisa...

A chuva batia na janela, e só se ouvia a chuva. Poderia Neiva dizer: neste dia, nada aconteceu. Francisco calou-se, as crianças se recolheram, mas Helissa ligou e, apesar de Helissa ter ligado, poderia Neiva ainda dizer: o silêncio é de todos.

Naquele dia, alguma coisa aconteceu com Neiva.

A chuva bateu na janela, a cortina esbarrou no rádio, a estação mudou.

Um piano ressoou na escuridão. Talvez naquele dia a solidão tivesse levado o medo para dançar, quem sabe ambos se avizinhassem de uma improvável amizade. Respirou fundo.

Quantos passos mede uma solidão?




26 visualizações0 comentário

Posts recentes

Ver tudo

Comentarios


Post: Blog2_Post
bottom of page