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Foto do escritorRevista Trajanos

DIÁSPORA


Por Oly Cesar Wolf


Éramos família, ou algo muito similar a isso. Ficávamos sentados à mesa, calados, como se ela fosse um altar onde rezávamos pelo milagre da multiplicação do alimento, que era sempre menor que a nossa fome. Milagre nunca houve. Quanto a nós, bem, nós não. Apenas isso, somente negativa éramos, como vazios escavados na matéria, como ausências encarnadas em corpos magros.

Aqueles eram dias duros que trincavam nossos dentes obrigados a roê-los. Por isso, por não vencermos mastigar a ossatura da nossa miséria, nos contentávamos em lamber o mole silêncio que vertia de nossas bocas semiabertas. Éramos quase pai e quase filho. Espírito não havia, muito menos santo. Mãe, irmãos, também havia, ou quase. Uns desacompanhando os outros, como se perfilados na vida e unidos pelos pés por uma pesada corrente de dias.

Pai morreu, mãe também. Morremos todos naquele lugar, não de morte de fato, mas de insignificância. Éramos mirrados, pequenos de quase não ser.

Chegou meu dia de ir. Pensei despedida, mas eu tinha apenas um fio de voz sem força de romper a pedra daquele silêncio duro. Deixei tudo lá, mesa vazia, parentes de serem mais sombras que pessoas. Chorar ninguém chorou, que não havia ânimo de tanto. Garrei estrada, levando comigo um corpo minguado e uma porção de desespero frio para comer pelo caminho.

Quando cheguei na cidade vi prédios de serem montanhas. Gente que nem formiga. Inveja tive daquela pressa toda. Eu, pressa não tinha, não havia em mim força para correr aquele tanto.

Depois de passada a admiração primeira, foi preciso cuidar da vida. Para viver, vendi minhas mãos e pernas. Meu corpo mínimo, com adição de alimento, cresceu e fortificou-se. Passei de não a sim, de uma hora para outra. Achei até que fosse mágica. Era mágica não, era proteína e carboidrato.

Um dia, depois de anos, pensei sentir saudade dos outros. Quis ver pai, mãe e irmãos. Para isso guardei papel, que me era dado em troca do meu trabalho. Com ele comprei passagem e fui. Depois de dias de viagem, cheguei na vila como quem não chega. Na casa, nada, nem mesa, nem parentes. Na casa já nem casa havia. No chão do terreno, o mesmo chão que, antes de partir, amparava meus olhos de animal morto, havia apenas um punhado de pó. Parecia nada com eles, mas reconheci nas feições daquela poeira, meu pai, mãe e irmãos. Peguei um lenço e recolhi tudo, cuidando para que o vento, ou uma respiração mais forte, não levasse embora o meu passado. Apanhava um punhadinho e pensava “Esse é a mesa de minha infância”. Outro punhadinho era a mãe, e assim foi. Cada tantinho de pó era um pouco de mim. Depois de algum tempo, catei os últimos grãos de poeira que restavam. Esses eram eu, falei para mim mesmo, brincando de imaginar doidices. Dobrei o lenço e vim embora.

Hoje está tudo ali, guardei naquele vaso. Deixei meu passado lá e plantei flor. Plantei mais de uma, na verdade, muitas flores eu plantei naquele vaso. Elas nascem, até nascem, até parecem que vão crescer e tomar a casa, e tomar o mundo, mas não. Morre tudo, assim que o broto da semente sai da terra, morre tudo.

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