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Foto do escritorRevista Trajanos

O destino é o que senão um embriagado conduzido por um cego?

Por Bruno Everton



O título, “Terra Sonâmbula”, foi meu primeiro encontro com Mia Couto e, sem dúvida, é um autor para se guardar no coração devido a sua maestria em nos presentear com uma obra que mescla a prosa e a poesia. Além disso, sua narrativa é uma aula de história com vestes de ficção fantástica, o que nos leva, sem perceber, a viajar pela história de Moçambique enquanto acompanhamos a jornada narrativa dos protagonistas.

Nessa obra, é retratada a decadência de Moçambique, a partir da Guerra Civil, que assolou as terras do país por praticamente 30 anos. Nesse quadro, podemos sentir a fragmentação da sociedade, ouvir o eco dos costumes tribais (com suas fábulas, mitos e parábolas) e, praticamente, perder-nos em meio ao conflito da realidade e da fantasia.



A obra em si é uma exposição da crueldade humana, da sua avareza material, da representação marginal e desprezada da figura da mulher, da paralisia humana em face de sua realidade que não converge com sua visão fantasiosa desta, da animalização do ser humano, da fuga, do medo e do sonho.


A narrativa se desprende com Tuahir, sendo esse um velho que busca sobreviver, mas sem carregar consigo muitas esperanças; Muidinga, essa é uma criança-fantasma sem passado, e com um presente envolto de mistérios acobertados por Tuahir; e, por último, Kindzu, sendo essa a voz que ecoa dos diários encontrados por Muidinga, que os lê como uma rota de fuga para a sua realidade cinzenta.

O velho Tuahir e o miúdo Muidinga são os responsáveis por apresentar toda a rica gama que as terras moçambicanas escondem na obra de Couto, seja pela ótica fantástica, a partir da leitura dos escritos de Kindzu por parte do Muidinga, ou pela ótica mais crua e realista do velho Tuahir, com seus contos escabrosos e por romper muitas vezes com a visão infantil e inocente de Muidinga.

A fantasia abre seus braços nos cadernos de Kindzu. Por meio desses, evoca-se fantasmas, criaturas mitológicas, metamorfoseia-se homens em animais ou, então, homens em pedaços de terra ou em árvores. São os cadernos de Kindzu que explicitam a fantasia escabrosa das veias abertas das terras de Moçambique, é a partir deles que você percebe os estragos que a guerra foi deixando conforme Kindzu segue sua viagem distanciando-se de suas raízes e sendo perseguido pelos fantasmas de suas superstições.

A linguagem do livro é riquíssima, trazendo consigo várias expressões típicas do povo moçambicano e, até mesmo, a própria construção sintática do povo, tornando-se ainda mais fiel à sua representação do povo retratado na obra. A obra em si é uma exposição da crueldade humana, da sua avareza material, da representação marginal e desprezada da figura da mulher, da paralisia humana em face de sua realidade que não converge com sua visão fantasiosa desta, da animalização do ser humano, da fuga, do medo e do sonho. Ou seja, a obra é uma vida inteira traduzida em linhas, páginas e parágrafos.

Por fim, Moçambique é uma terra que dorme (ou dormia) sofrendo de espasmos em decorrência de seu pesadelo, esse anestesiando seu corpo, impedindo-a que reaja, de forma devida, ao seu tratamento de choque, ou seja, a guerra que o fragmenta e destrói.

“A terra anda a procurar dentro de cada pessoa, anda a juntar os sonhos. Sim, faz de conta ela é uma costureira dos sonhos.”



LIVRO



Terra sonâmbula, Mia Couto. Companhia das Letras, 2007. 180p.

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