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O peso do pássaro morto, de Aline Bei

Por Renata Miccelli



[...] de resto
a cidade seguiu seu curso
nem parecia
que alguém tinha morrido
até porque todos os dias alguém morre sem
ninguém saber.
(Aline Bei)

Quantas perdas cabem em nossa vida? Com quantas uma mulher é capaz de lidar? Ao certo, ao menos uma.

Aline Bei, paulista, em seu primeiro livro, O peso do pássaro morto, publicado pela Editora Nós em 2017, traz uma narrativa um tanto quanto diferente, não estruturando sua obra à formalidade de um romance canônico, apesar de claramente delimitar um início, um meio e um fim.

Em sua prosa temporal, acompanhamos a vida de uma personagem desde sua infância até sua idade adulta. Vemos, nesse ser que não tem seu nome dito, uma trajetória que parte da inocência e, mais a frente, depara-se com a realidade dura da vida.

Uma trajetória que perpassa os momentos marcantes: o ser criança, o crescer, o primeiro amor, o primeiro show de rock, o primeiro filho, a primeira perda, a saudade, a memória.

Ao longo da escrita, simples, aconchegante, às vezes agoniante, o que mais impressiona é o realismo. Lemos como se fosse um diário, no qual a personagem despeja os acontecimentos dos dias, dos anos e, ao mesmo tempo, seus sentimentos e pensamentos.

Lemos a história de uma menina que, ainda criança, perdeu sua melhor amiga. Na adolescência, foi violentada pelo namorado. Desse ato, teve seu primeiro e único filho. Uma menina que, pelas circunstâncias da vida, precisou crescer e amadurecer cedo demais. Mas essa história você já ouviu em algum lugar, não?

“– é um menino. – o médico disse

e colocou o bebê

no meu colo.

eu estava chorando

de cansaço,

olhei praquela criança

também chorosa, ela que

não fazia ideia

do que é no mundo nascer um menino,

alguém precisa contar.”


Percebo, ao me deparar com a personagem, que ela reserva uma história vivida por milhares de mulheres brasileiras, e isso torna a obra sentimental, humana, ainda mais real. Leio a história de uma mulher, não mais uma garota, que aos 18 anos entende que “quando um bebê nasce”, “uma Flor brota no peito e sai pelo leite da mãe”, uma “flor invisível”, a qual “algumas pessoas chamam [...] de amor”.

Ela, no entanto, procurou pela flor no “peito descampado”, procurou “em cada canto”, mas “(nenhum sinal da Flor)”.

Nenhum sinal da flor.

Nessa inocência de palavras, nesse amadurecimento de alma, Bei aborda questões importantes, questões que vão muito além da perda de um ente querido: estupro, violência, relacionamentos abusivos.

Talvez, para a autora, a perda se dê em vários acontecimentos. A cada trauma, uma perda de si mesma. A cada distância, uma parte nossa se vai. A cada sonho abandonado, a cada desistência, a cada sofrimento, a cada dor, a cada ano... menos nós e, ao mesmo tempo, mais nós.

Mais nós, mais marcas, mais cicatrizes. Menos o que, quando crianças, sonhávamos em ser.

A pior perda, talvez, não seja a da morte. E sim, da ausência, da voz sufocada, do esquecimento, do vazio. As piores perdas, talvez, sejam as que nos deixam mais fortes como uma casa “que mesmo depois de 50 anos [...] estava disposta a ser a última do mundo”. “[...] quando tentaram demoli-la [...] não conseguiram. Explosões, guindastes e nem 1 tijolo mexeu”.

Centrando-se no fato de que, para perdas, para a dor, “a cura não existe” – nem o tempo é capaz de curar nossas faltas – o livro de Aline Bei, vencedor do Prêmio São Paulo de Literatura de 2018, é uma leitura desconcertante e revigorante, reflexiva. É uma leitura necessária.

No vazio de nós mesmos, perdemo-nos diariamente. Morremos diariamente. O que nos resta então, senão viver?



O peso do pássaro morto. Aline Bei.

Editora Nós, 2017. 168 p.

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1 Comment


Juliana
Juliana
Jun 05, 2021

Que escrita incrível! Consegui trazer a emoção do livro de um forma inexplicável!

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