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O rei era assim, de Paulo Sandrini

Por Bruno Everton




Em nossa última parada do roteiro de visitações literárias, dedicamos a visita à obra de Paulo Sandrini, que se debruça em uma proposta inusitada e experimental em O rei era assim. De forma peculiar, a narrativa abre espaços para algumas armadilhas temporais, uma vez que ela não marca o ano exato em que se passa. Outra é que o Rei, foco dessa narrativa, é relegado quase ao absoluto silêncio, não é ele quem fala de si e seus feitos, mas todas as pessoas ao seu redor se voltam a falar sobre a figura monarca para um interlocutor inexato e desconhecido. São esses os dois pontos que conferem destaque à obra de Sandrini, servindo de cativeiro para o nosso olhar de leitor curioso em busca de novos espaços a serem explorados por meio da leitura, seja ela compromissada com um viés crítico, ou meramente visando a fruição do momento.

Por falar em tempo, também temos que falar em espaço, e quanto a este aspecto Sandrini foi feliz em nomear os lugares como “Nenhures” e “Algures”, pois, paradoxalmente, o ato de nomeação passa a ideia de um lugar exato e que existe, mas, ao mesmo tempo, esse blend entre Nenhum Lugares (Nenhures) e Alguns Lugares (Algures) apresenta uma ideia de inexistência do lugar por meio da concepção abstrata e vazia de “nenhum” e “algum”, pois as vozes narram de lugar nenhum em relação ao nosso espaço-tempo, mas estão situadas em algum lugar dessa cronologia inexata da obra fictícia. Justamente pelo espaço e tempo da narrativa serem inexatos e não concretos, no sentido de não estar explícito quando e onde se passam as coisas, é que temos a colisão dos símbolos da monarquia (rei, rainha e príncipe) com a república (vereador, governador). Como se o tempo-espaço fosse um platô que justapõe os diferentes períodos, acompanhamos a família real chegar em algum lugar, instalar-se, reclamar o “trono” e se misturar com o novo meio, e por meio dessa mistura, vemos a figura do Rei trocar de roupa, abrindo mão de suas vestes reais, passando ao vestuário engomado da política contemporânea.

No entanto, essa transição de comportamento do Rei não é acompanhada por meio da sua perspectiva – conforme dito anteriormente, ele é o assunto da narrativa, mas não o foco dela, pelo qual acompanhamos o desenvolvimento por meio de seu olhar –, mas sim todos ao seu redor que discursam a fim de complementar o indicado no título do livro. Logo, os moradores do novo “reino” e até a Rainha e o Príncipe compartilham com o interlocutor inexato – o leitor hipotético – quem era o Rei. Por meio disso, passamos a saber que o rei era assim... gostava de farra, foi um leitor ávido, ganhou peso, pervertido, de ética e, talvez, de orientação sexual duvidosa. Gente como a gente, obstinado, comprometido, mas falível e carnal. No fim, o Rei, como símbolo, é desconstruído junto à monarquia e seus ideais conforme a narrativa progride, pois, nos finalmente, não estamos mais diante de um rei, mas de qualquer outra coisa que não ele. No entanto, antes de perder por completo a si próprio, observamos o que chamarei de antimetamorfose, pois, alinhado ao paradoxo temporal de estarmos diante de um espaço que concilia monarquia e república no mesmo local, esse processo de fuga do Rei ao final, abandonando a política, todas as posses que obtivera, e fugindo à cavalo (coerente para a época que ele representa), representa a recusa da sua metamorfose de rei em um político qualquer, não à toa ele retoma o cetro, símbolo de realeza, veste sua capa e resgata a sua essência junto a sua família.

Dito isso, Sandrini mostra um experimento bem sucedido, ao brincar com os métodos da narrativa, envolvendo nessa alquimia: espaço, tempo, símbolos e discursos, mostrando uma capacidade autêntica de como dar um passo além da zona de conforto, constituindo uma representação crítica de um cenário político que, muitas vezes, ostenta modernidade, mas sua estrutura é velha e arcaica. Assim como, o contato com essa estrutura corrompe aquilo que nos é essencial, logo, para preservarmos a essência, seja enquanto indivíduo ou símbolo, é necessário fugir desse contato, caso contrário, acabaremos sendo mais uma engrenagem a alimentá-lo.


Livro


O rei era assim, Paulo Sandrini, Kafka Edições, 2011.

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