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Carimbos, de Samantha Buglione

Por Bárbara Martins


Quando uma criança nascia rosada, os homens cobriam de frio

para rapidamente mudar o tom e assumir a normalidade vigente.

(Samantha Buglione - Carimbos)



O livro Carimbos, da escritora Samantha Buglione foi publicado pela editora Ipêamarelo em 2020. São contos curtos que transitam entre o real e o fantástico. Encontro nesses contos diferentes temas, a morte, o tempo, sexualidade, amor, um cenário de sociedade depravada, a solidão..., mas uma das coisas que me chama atenção nos contos de Samantha é a representação da repetição do quadradismo da vida contemporânea.

Imagine um mundo quadrado. Onde as salas são quadradas, os transportes são quadrados, telas quadradas, música quadrada. Além disso, todo o ambiente forma linhas retas cujos ângulos são retos. As pessoas são retas, são enrijecidas pela perfeição do quadrado e seus ângulos retos. Tão logo as ideias são quadradas e retas, por não variarem de tamanho e complexidade elas se repetem. Então a cabeça de alguns cresce e alargam-se em ideias quadradas e prontas. Sem contar as sensações quadradas em cores pastéis, provavelmente sem aromas ou aromas quadrados. Esse mundo quadrado está no conto distópico “Treinamentos”. Tudo nesse conto é quadrado, até mesmo o alinhamento do texto é quadrado.

Esses quadrados e linhas retas que se repetem infinitamente, representam a vida em uma sociedade que não preza a complexidade, a diversidade de coisas e pessoas. Preza pelo desempenho, pelo foco, pelas caixinhas quadradas em que tudo se encaixa perfeitamente e possui “as garantias para o fiel funcionamento de tudo”. Esse sistema poderia ser chamado de quadradismo. Que seria um sistema em que tudo funciona em certa ordem se está dentro dos parâmetros normais de quadrados e linhas retas de qualidade. Mas o mundo não precisa de mais um nome quadrado, já temos algo bem parecido.

Portanto, não precisamos ir muito longe para perceber que os traços distópicos desse conto estão presentes em nossa sociedade atual. O que Byung-Chul Han [1] discute sobre a “sociedade do desempenho”, se aplica de certa forma nos textos de Samantha. A sociedade do desempenho, grosso modo, está focada na motivação de que todos podemos alcançar nossos sonhos, metas e a vida dentro daquilo que é considerado normal e aceitável para nossa sociedade atual. Esses sonhos, assim como no conto, acabam sendo os mesmos sonhos, as mesmas metas, o mesmo foco para todos. Além disso, esse desempenho cobra de nós papéis sociais idealizados. Vemos isso no conto “Adormecer” o papel de uma mãe cansada das cobranças, que nem mesmo “odiar com vontade” ela consegue. Pensando nisso, quando algo se afasta do esperado padrão, a sensação de insegurança e fracasso são muito intensos. E acabam nos levando a se perder dentro de nós mesmos.

Não apenas em “Treinamentos” que encontro esses traços. Nos contos sem características distópicas, como em “Disparates”, também encontro personagens quadrados, formatados para uma vida dentro dos conformes. A moça que orquestra seu dia dentro de uma única e esperada agenda, precisa cumprir todos os passos “com maestria”. Não tem tempo para flores, cores, jardim...


“DESENHOU SUA VIDA DENTRO DE UM CONFORME DE POSSIBILIDADES PREVIAMENTE BEM PENSADO. (...) VIVER PARA ELA CONSISTIA EM DELIBERAR SOBRE HIPÓTESES ESTABELECIDAS”.
(DISPARATES, SAMANTHA BUGLIONE)

A menina que lhe oferece as flores a serem plantadas em um jardim representa tudo aquilo que nos tira da mesmice, do padrão, da zona de conforto. Mas a moça continua focada dentro de um conforme. O foco e a meta, são presentes na vida da outra moça que quase confunde-se com a cadeira em que se senta todos os dias para trabalhar, no conto “Há sombras”. Até a personagem dona Gordum que só “de pensar em perder acontecimento fora do combinado da vida lhe morria a ideia”, prefere ficar grudada em sua cadeira apenas observando apenas tudo aquilo que acontece fora do quadrado esperado.

O conto “A morte da auditora” é um conto que trata do conformismo e conforto de estar com sua vida dentro dos conformes. No entanto, num piscar de olhos, a morte leva a auditora que sabia tudo de papel e carimbos, menos da vida. O carimbo nesse conto é um elemento muito relevante. É o carimbo que autentica o conhecimento formatado da auditora sobre ela e sobre a vida. Mas de nada adianta já que “a lei da vida não avisa”, e tudo se acaba da noite para o dia.

Outro ponto que colabora para a representação do quadradismo, são as percepções e sensações. Poderia até olhar os contos pela teoria da fenomenologia da percepção, mas o que realmente importa é que as sensações são percebidas diferentemente por cada um. Em “O tapete de folhas” as folhas que caem das árvores durante o outono são “sujeira para alguns, palco de cores e cheiros para outros”. Aqui as velhas varrem na esperança de ver a calçada “idealizada”, já as crianças brincam, e o homem que se diz entendido sobre “as quedas da vida”, apenas olha para as folhas e continua a correr.

As percepções exigem momentos contemplativos da vida ao redor. Comtemplar não está presente nos personagens do livro “Carimbos”. Esse ato exige tempo inútil. Comtemplar o mundo é desviar-se do combinado. Pensar demais fora da caixa quadrada, traz muitas incertezas.

O restante dos contos segue com personagens que se descobrem ora fora do “combinado da vida”, ora entregues ao conforto da vida esperada. É claro que nos deparamos com personagens que amam e doem demasiadamente e não se encaixam em nada do que foi dito. Talvez essas personagens estejam ali para mostrar que nem tudo está perdido, mesmo depois de sentir a “dor do mundo” na morte de um filho, ou quebrar as certezas de um casamento após anos juntos.

Enfim, a verdade é que “Carimbos” é uma leitura daquelas que você filosofa por uma hora após de ler um conto de uma página. Ainda estou digerindo em pedaços pequenos os variados ângulos (esses não são retos) possíveis de serem observados ao ler os contos de Samantha. Por enquanto, fico com as ideias sobre os quadradismos da vida contemporânea.


[1] HAN, Byung-Chul. Sociedade do Cansaço. Editora Vozes. 2015. 69 p.


Livro


Carimbos, Samantha Buglione. Editora Ipê amarelo, 2020. Ebook Kindle.

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