Nunca mais andei sozinho
Foi no meu segundo apartamento alugado que elas entraram na minha vida. Com passos despretensiosos, caminhavam em silêncio nas paredes, quase imperceptíveis. De início, na minha ingenuidade latente, imaginei que estavam só de passagem. Quem sabe faziam parte de uma peregrinação da espécie, que corta cidades e atravessa a selva de pedra pegando cozinhas alheias como atalho. Em tempo, descobri que eu estava errado. Inclusive, quando as vi pela primeira vez, já deviam estar instaladas nas entranhas de concreto do prédio há muito tempo, só esperando o momento oportuno para tomar conta. Eu estava enganado sobre outra coisa: não eram poucas. O aerosol laranjado que compramos no supermercado dava uma falsa impressão de extermínio. Eu matava duas, respirava aliviado, só para encontrar mais duas em seguida.
Demorei um tempo para entender que não eram visitantes. Elas eram moradoras daquele apartamento, tanto quanto eu. Residentes convictas, com passe livre para desfilar em todos os cômodos, pegar um sol na janela, caminhar entre as inúmeras frestas e dançar um baile dentro da pia. Foi uma invasão, da pior forma possível. Sem nenhum consentimento, decidiram que meu apartamento não era só meu, mas nosso. Eu tinha que me acostumar com seus hábitos e horários e, de certa forma, elas fizeram sua parte e se acostumaram com os meus. À noite, por exemplo, era horário delas. Ai de mim se precisasse tomar uma água no meio da madrugada. Nesse caso, precisaria esmagar as cascas duras e empestear o ar com veneno por minutos antes de conseguir andar em paz pela cozinha.
Quando a situação estava fora de controle, vi um cartaz no elevador noticiando que haveria dedetização nas áreas comuns do prédio. Eu caí na gargalhada. Um riso agoniado, perturbado, mas extremamente sincero. Não era só eu que dividia minha casa, era um problema público, do prédio todo. Dez andares inteiros infestados por insetos tão pequenos, que causam uma repulsa infinitamente maior do que seu tamanho no mundo.
Vieram outras tentativas de extermínio. Tentei veneno, receitas caseiras e, o mais ridículo de tudo considerando minhas crenças – ou falta delas –, até reza eu fiz. Quanto mais eu tentava matar, mais eu acabava morrendo.
A vida acabou me tirando daquele inferno: mudei de apartamento. No meio do caos emocional de um término e das turbulências financeiras de uma mudança de residência, um sentimento se escondia no canto da minha cabeça: liberdade. Lá, no conforto do meu novo lar, as desgraçadas não irão.
Como a gente se engana na vida, não é? Devem ter vindo nas caixas. Quem sabe nas peças do guarda-roupas desmontado ou até mesmo no interior do meu coração agora um pouco mais vazio. Eu realmente não sei. Mas aqui estão: escondidas em algum buraco escuro do casarão, com suas patinhas incessantes, cascas duras e uma persistência irritante em continuarem vivas.
Se vemos uma no meio da cozinha à noite, matamos. Mas eu sei, por experiência própria, que matar uma não significa nada. Quanto mais elas morrem, mais elas vivem.
Sinto que elas me acompanham e sempre vão. Outro dia vi uma na rua, longe da casa nova, longe do apartamento onde tudo começou. Andando devagar, na mesma direção que eu, como uma escolta imortal. Ontem mesmo, encostei a cabeça na janela do ônibus, sentindo na pele os efeitos de uma das maiores ressacas que meu corpo já viveu. Adivinha quem estava lá, caminhando tranquilamente abaixo do banco à minha frente, sem nem tremer com o trepidar do ônibus em uma rua esburacada?
Agora, enquanto escrevo, tenho certeza de que se eu olhar atrás da escrivaninha, vou encontrar minha companheira. Sei que estão aqui, se multiplicando, murmurando, tramando e se preparando para continuar invadindo cada pedaço deste mundo sobre o qual nutrimos a ridícula ilusão de que pertence a nós.
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Sobre o autor
Jordan Souza
Nasceu em Curitiba, no Paraná, em 1995. Desde o início da sua vida escolar, sempre se interessou pela leitura e por contar suas próprias histórias. O amor pelo storytelling e pela criação levou-o para o curso de Publicidade e Propaganda, no qual se formou em 2017 e, no mesmo ano, deu início a sua carreira como escritor independente com a publicação do conto “A Bandeira Vermelha”. Seu segundo conto, “Paraíso”, veio no ano seguinte. Com o ingresso no curso de Letras, em 2019, aprofundou seu laço com a literatura, contemplando novos caminhos narrativos. Em 2021, participou da publicação coletiva Vera-cidade Fero-Cidade Fuga-Cidade, antologia poética publicada pela Kotter Editorial, sua primeira imersão no universo da poesia.
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