Qual foi o seu último abraço gratuito?
Esses dias me peguei pensando na vida antes do fim do mundo. De como as coisas eram diferentes. Saudosismo legítimo, afinal. Quem não sente falta, anda furando o isolamento ou promovendo riscos adicionais à atividade diária que, por si só, já é perigosa.
Me lembrei da última vez que fui à academia. Eu tinha acabado de me organizar e estava feliz da vida em conseguir ajustar a rotina: aulas, filha, casa, contrabaixo, cachorro, tudo. Naquele dia fui e malhei sem saber que era o último dia. Malhei só pra suar um pouco, pra colocar o corpo em movimento. Não era pra marombar. Adoro a ideia de ser um sujeito acima do peso que corre um pouco mais que um sujeito mais atlético. Talvez eu goste das narrativas do tipo “A lebre e a tartaruga” ou “O fumante e o crossfiteiro”. Enfim, só malhei. Se soubesse que era a última ida à academia, eu teria malhado mais, corrido mais. Bem “Epitáfio” do Titãs. Ou teria cabulado a malhação e ido ao bar beber e dar uma canja com o grupo de jazz da noite. O que tocaria? “Blue Bossa” como se fosse Giant Steps.
O fato que essa ida à academia me fez movimentar, suar e despentear. No retorno, tive que passar pelo serviço pra buscar a mochila e seguir pra casa. Ao chegar numa das entradas da UTFPR, meio encabulado por estar de shorts em ambiente de trabalho, avistei uma aluna. Sem pestanejar, mandei um sorridente “Ná Flávia!”. Ela me viu, veio em minha direção e me deu um abraço. Fazia tempos que não nos víamos e era legítima a alegria de ambos! Alunos queridos, conversas boas e aleatórias. Saudades disso tudo!
Bom, acontece que eu, suado, descabelado, de shorts no trabalho, não soube lidar com a espontaneidade. Retribuí o carinho com um meio abraço. Isso dói! Da época que podíamos abraçar, entreguei meio abraço! Quando me dei conta disso, mandei recado pra ela. Um ano depois, é claro. Afinal, ninguém imaginava que fosse durar tudo isso. Falei que estava em débito abraçadeiro. Brinquei ainda que, no momento oportuno, entregaria meio abraço em forma de abraço inteiro. Ela teria duas possibilidades: ficar com o troco ou devolver o abraço inteiro. A segunda opção faria a dívida jamais ser quitada. Por isso, credores abraçófilos, devo! Não nego! Pago assim que o fim do mundo acabar!
Penso nisso. Rio, choro, como quem toma café num dia frio sem sol. Melancolia materializada. E assim seguimos. Na mesma toada, passam os dias e vejo pessoas lamentando a distância dos entes queridos: filhos há mais de um ano sem abraçar os próprios pais. Já pararam pra pensar quando foi o seu último abraço gratuito? Talvez seja muito anterior ao fim do mundo.
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SOBRE O AUTOR
Gustavo Nishida
Gustavo Nishida é bacharel, mestre e doutor em Letras pela Universidade Federal do Paraná. Atua como professor dos cursos de Letras Português e Comunicação Organizacional da Universidade Tecnológica Federal do Paraná. Paulista de nascimento e paranaense por tempo de moradia, divide as atividades docentes com a música, a fotografia e a escrita. Em 2020, publicou seu primeiro livro: A voz do ornitorrinco.
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